Há mais de três décadas discutem-se as possibilidades de uma educação para todos. Leis, decretos e declarações, nacionais e internacionais, foram instituídos. Apesar do tempo, debates acerca da inclusão continuam na ordem do dia e o imperativo de uma educação para todos mantém-se atual.
Certamente há um encanto na expressão para todos. Encanto melodioso, hipnotizador, que faz lembrar um conto folclórico alemão, O flautista de Hamelin. Vale apresentar aqui um breve relato desse conto a fim de provocar uma discussão acerca dos perigos dessa melodia encantadora.
Há muitos e muitos anos a cidade de Hamelin sofria com uma invasão de ratos. Seus ricos habitantes não sabiam mais o que fazer, até que decidiram oferecer uma boa recompensa em dinheiro àquele que livrasse a cidade desses animais. Pouco tempo depois, um forasteiro interessado na recompensa chegou à cidade, com sua flauta, e começou a tocar uma melodia maravilhosa. Os ratos, encantados, saíam dos seus esconderijos e seguiam o flautista, hipnotizados. O flautista levou-os até o rio da cidade, onde os ratos morreram afogados.
Apesar de livrar a cidade dos ratos, os habitantes não cumpriram a promessa e não pagaram o flautista. Este, furioso, deixou a cidade, mas retornou semanas depois. Enquanto os habitantes estavam na igreja, o forasteiro tocou novamente sua flauta, atraindo desta vez as crianças de Hamelin. Tal como os ratos, as crianças seguem-no encantadas com a melodia e se afogam no rio. Apenas três crianças sobrevivem: uma cega, que não consegue seguir o flautista e se perde no caminho; uma surda, que não consegue ouvir a flauta, e uma deficiente física, que usa muletas e cai no caminho.
Interessante destacar dessa história, inicialmente, a impossibilidade de que todos estejam na mesma posição. O tal forasteiro – o estrangeiro no lugar da exceção – não fazia parte do todo e, justamente por isso, pôde trazer uma ideia inédita. Outro aspecto importante é a formação da massa, como bem analisou Freud (1921), sedenta por um líder hipnotizador. Ao se transformar em todos, a massa corre o sério risco de ser afogada no rio! O final do conto é revelador: os únicos sobreviventes são deficientes. A deficiência como lugar de exceção, a qual não se conforma ao todo. Algo na alteridade deficiente serviria de anteparo a uma pretensão totalizante.
O para todos, globalizado, é um imperativo nos discursos oficiais acerca da inclusão escolar. Seria efetivamente educação para todos ou governo e controle de todos? Para controlar, é necessário conhecer, regular e normatizar. Dessa forma, a gestão – palavra tão em voga atualmente – se torna eficaz. Administrar todos é mais fácil do que gerenciar cada um. Conhecer o que será governado torna-se fundamental e, por isso, entram em cena, revigorados, os diversos saberes especializados, os quais teriam como função descrever os chamados incluídos (ou laudados, termo muito recorrente nos meios escolares). De acordo com Lockmann (2013), “Há, portanto, a necessidade de tornar os sujeitos conhecidos, de capturá-los dentro de classificações e diagnósticos que lhe atribuam um nome, ou de uma síndrome, ou de uma deficiência, mas, em qualquer um dos casos, fazem desse sujeito alguém menos estranho, mais conhecido e, por isso, mais governável”.
Refletir sobre os paradoxos concernentes à pretensão totalizante e estandardizada de uma empreitada para todos, não significa defender uma educação para alguns, elitizada. Em contrapartida, propõe-se um deslocamento da questão a fim de argumentar que o sentido da educação tem que ser compartilhado com todos. Afinal, em nome do que educamos? Se não recuperarmos o sentido da educação, continuaremos submissos aos encantos hipnóticos, tal como os ratos de Hamelin, de um ideal de inclusão e controle total.
Custódio (2011), alinhada à perspectiva da filósofa Hannah Arendt (2009), sublinha que o “mundo é, para a educação, o significado fundamental de seus esforços”. Esse deveria ser o sentido universal, para todos, da educação. O conceito de mundo, tal como a referida filósofa o concebe, refere-se ao acesso aos bens culturais públicos e realizações históricas, ou seja, conhecimentos, linguagens, expressões artísticas, práticas sociais e morais que desejamos transmitir às novas gerações.
Historicamente o sentido da escolarização dos chamados alunos especiais, devido à extrema influências dos campos da Medicina e da Psicologia, nunca foi o acesso aos bens culturais. Dessa forma, aos chamados especiais estaria vedada a possibilidade de participação na polis. A educação se restringiria aos aspectos instrumentais, o que possibilitaria talvez um pouco de autonomia para que se perpetuasse a vida na esfera privada.
Diante dessa perspectiva, não é possível apoiar uma educação para todos na qual a alteridade seja controlada, examinada e pasteurizada, mas sim reivindicar esforços educacionais que possibilitem a introdução de todos no mundo comum.
A educação é, por excelência, um campo tenso e imprevisível. Por um lado, há a necessidade de conservação e transmissão do mundo como um bem imaterial construído pelos nossos antepassados e, por outro, há seres novos que vão se relacionar de forma sempre inesperada com essa transmissão. Isso determina um trabalho que torna impossível a padronização e a garantia.
Diante dessa dificuldade estrutural, torna-se imperioso um trabalho artesanal, para cada um. Enfrentar essa empreitada exige que professores e alunos possam se sentir minimamente acolhidos. Os primeiros, em sua árdua tarefa de transmissão, e os segundos, no incerto (e incômodo) trabalho de dar significado à inserção em um mundo comum. O resultado dessa operação é sempre incerto, imprevisível, visto que não é possível determinar a priori como o aluno vai se relacionar com os fragmentos do passado que lhe são apresentados.
Cabe sublinhar que todo ideal pedagógico que não levar em consideração a dimensão impossível do ato educativo, está fadado ao fracasso. De acordo com Voltolini (2011), na essência da educação existe um dilema que a define, “cuja solução é impossível: como atingir o bom termo entre unificar sem aniquilar as diferenças e permitir as diferenças sem que isso ameace a conservação de um mínimo solo comum?”.
Admitir essa dimensão impossível também significa abrir espaço para uma experiência tecida a partir do encontro, sempre imprevisível, entre professores e alunos. O grande problema, atualmente, é que o campo da Educação cada vez mais prescinde da dimensão artística e privilegia a dimensão técnica.
A exacerbação do tecnicismo significa o predomínio do caráter replicável e serial, oriundo da fabricação de objetos, em uma tarefa eminentemente humana, a educação. Considerá-la como arte, e não meramente como técnica a ser aplicada (e replicada), requer uma mudança subjetiva – tanto do professor quanto do aluno – a partir de uma experiência em conjunto.
Isso não ocorre na massa, dada sua dimensão artesanal. Menos ainda quando se trata do chamado aluno especial, o qual não se dilui no todo. Lembremos, afinal, que os chamados deficientes foram os únicos a se salvar do destino funesto arquitetado pelo flautista de Hamelin. Justamente a partir de seu lugar de exceção, foi possível resistir ao apelo hipnótico.
Psicanalista. Doutora em Educação pelo Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação, na linha de pesquisa Educação Especial, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP); especialista em Transtornos Globais do Desenvolvimento, pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e graduada em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Docente do Departamento de Desenvolvimento Humano e Reabilitação da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Autora do livro, finalista do prêmio Jabuti 2017, “Educação Inclusiva: para todos ou para cada um? Alguns paradoxos (in)convenientes.” Editora Escuta/ FAPESP, 2016”
Artigo deDorisnei Rosa e Maíra F. Brauner
Artigo deRosa Maria Marini Mariotto