Os momentos de crise, tempo de intervenção virtual e aposta simbólica nos levaram a construir o espaço de discussão online intitulado “Debates Interdisciplinares”. Trata-se de debater estes momentos de incertezas, no qual produziu-se não apenas uma crise sanitária mundial, mas também uma crise humanitária e econômica generalizada, com cortes salariais, inúmeras demissões de profissionais no campo da educação. Momento esse, no qual as individualidades e os narcisismos precisam ser deixados de lado, possibilitando a entrada em cena do coletivo na lógica do cuidado uns com os outros.
Neste contexto, as escolas de educação infantil estão fechadas e as pequenas crianças, suas famílias e os educadores estão à espera do fim da pandemia do covid-19. Diante deste cenário, os pais se vêm cada vez mais ansiosos e cansados, pois acabam por acumular muitas funções, além de estratégias para reorganização de seus cotidianos, uma vez que seus filhos não podem frequentar as escolas, neste tempo de isolamento social. Segundo relatos, para alguns pais a opção tem sido deixar seus filhos com babás, vizinhas ou educadoras, na modalidade dos antigos “cuida-se”[1]*. É relevante colocar que, atualmente, nem as vovós podem auxiliar, pois são consideradas como grupo de risco.
Visto este tempo de isolamento social, no qual os educadores estão impedidos de encontros presenciais com seus pequenos alunos, criatividade e mudança discursiva são dispositivos potentes que podem lançar o educador a realizar uma importante mudança: a passagem de uma posição exclusivamente pedagógica para outra posição – a de agente na sustentação dos laços simbólicos e estruturantes ao desenvolvimento das crianças. Uma das estratégias encontradas pelos educadores, está sendo acolher e observar, fazendo uma leitura das cenas que as crianças lhes apresentam e endereçam através dos encontros remotos, mediados pela tela do computador. Cenas que precisam ser lidas e decifradas, porém, sem que o educador caia no engodo de produzir ensinos ou modelos de orientação aos pais.
O interessante, nesta leitura e deciframento, é abrir caminhos, sentidos e significações, através da palavra, dos jogos, das dramatizações e do brincar virtual. Dizendo de outra forma, neste tempo de isolamento social, ao invés das crianças serem levadas para as escolas, são os educadores que adentram as casas/lares das crianças, através das telas dos computadores, encontrando no brincar o dispositivo por excelência que as crianças possuem – ou precisam construir – para simbolizar o mundo, apropriar-se de si e dos seus objetos de conhecimento. Ao brincar, a criança pode falar, expressar e simbolizar o que lhe produz sofrimento. Como dizia Freud2, em Além do princípio do prazer, uma criança brinca ativamente do que sofre passivamente.
Para tal, neste isolamento social, apostamos que o brincar – mesmo na modalidade virtual – pode tornar-se um potente dispositivo constitutivo e estruturante para as crianças. Também em relação ao educador, o brincar pode constituir-se em um importante dispositivo que lhe permita produzir semblantes nas cenas orquestradas pela criança, deixando livre a função educativa3. Abre-se dessa forma, uma via discursiva, a partir da qual a pequena criança poderá protagonizar as cenas na condição de sujeito de desejo, via o brincar virtual.
A palavra da criança é o seu brincar. Ao brincar com sua criança, o educador, mesmo através da tela do computador, pode dar à sua intervenção uma direção singular. É neste sentido, que o educador pode tornar-se um partícipe do processo de subjetivação das pequenas crianças. É compreensível que, num primeiro momento, esta modalidade de intervenção – online – represente um trabalho árduo para alguns educadores, acostumados a realizar cotidianamente suas intervenções – até então – em caráter pedagógico e educativo, de forma coletiva e em presença corporal. Porém, tal intervenção, de uma hora para outra, foi-lhe demandado que precisa ser transmutada da condição presencial para virtual, cujo foco não está mais completamente centrado no caráter pedagógico e educativo, mas sim, nos aspectos relacionais e constitutivos do desenvolvimento. Realmente, não se trata de uma estratégia didático-pedagógica, porém, é absolutamente necessária, enquanto durar o isolamento social.
Assim, para um mínimo de efetividade, os encontros virtuais entre educadores, crianças e suas respectivas famílias, necessitam ser sustentados por laços construídos no cotidiano educativo. O educador pode fazer suas intervenções com a criança e sua família em horários marcados, ou pode fazer atividades coletivas para toda sua turma de crianças, em caráter virtual. Cada educador tem seu estilo próprio, assim como cada família tem, da mesma forma, seus próprios estilos, tradições e seus valores.
A participação mais frequente, seja de forma coletiva ou individual, traduz uma relação indireta e não presencial, estabelecida de forma online entre a criança, sua família e seu educador. Implica que o educador e sua escola apareçam, para as crianças e famílias, por meio de vídeos gravados contendo recados, atividades, histórias, tarefas pedagógicas, etc. Não se trata de um encontro na tela do computador, do celular ou do tablet. Trata-se de gravações nas quais os educadores demonstram para a crianças, o quanto ele e a escola estão à espera das crianças, para darem seguimento às suas atividades presenciais, quando terminar o isolamento necessário. A criança assistirá ao vídeo ou acessará via Facebook quantas vezes desejar, e todas as vezes que seus cuidadores o apresentarem a ela. Podem ser, também, vídeos individuais, nos quais a educadora envia seus recados para a criança, através de brincadeiras ou histórias que sejam recreativas e de narrativa interessante à idade e à singularidade da criança.
Já na forma de um encontro virtual simultâneo, ao vivo entre o educador e a família, a aposta simbólica é propor um brincar em tempo real, entre a família, o bebê (ou pequena criança) e o educador (que está na tela do computador) (Figura 1). Acontecem quando o educador singulariza sua intervenção, utilizando-se de vídeo chamadas – ou qualquer outra forma –, através da qual, ele se comunica em tempo real com o bebê ou a pequena criança e seus cuidadores primordiais. O laço educativo se dá na conversa, na brincadeira, na contação de histórias e na realização de atividades do educador com determinada criança, tomando-a como sujeito ativo e participante, mesmo tendo uma tela de computador como anteparo. Nesta aposta, o educador se dirige, ao mesmo tempo, aos dois (ao bebê e seus cuidadores), anunciando um retorno possível aos encontros presenciais.
Esta participação simultânea, pode ser coletiva também, na qual o educador – através de alguma plataforma online – olha todas suas crianças na tela e lhes conta histórias, faz brincadeiras e atividades semanais. Isso tudo, se refere às participações diretas, embora ainda em caráter virtual e não presencial. Não se trata de ensinar ou orientar, mas de construir momentos de encontros e produção de laços transferenciais, entre as crianças, suas famílias, os educadores e a instituição
Na lógica da criatividade e da reinvenção, há relatos de experiências de educadores de escolas infantis e conveniadas de Porto Alegre, que, através da entrega de cestas básicas para os pais das crianças que frequentavam a escola infantil, armaram-se espaços de encontros e conversas importantes. O interessante dessa modalidade, mesmo que por pequenos momentos presenciais, no portão da casa ou na soleira da porta da escola, isso possibilita ao educador bons momentos de conversa do cotidiano atual e escuta a essas famílias. Este encontro possibilita uma forma de sustentar os laços e a expectativa pelo retorno do cotidiano educativo. Momentos de criatividade, solidariedade, cuidado e educação para além dos muros da escola, em tempos de isolamento social.
Frente a tantas mudanças e reinvenções, nos perguntamos sobre os limites entre o possível, o necessário e o excessivo. Especialmente quando o assunto é o universo virtual e o uso das tecnologias: tablets, celulares, vídeos, vídeo-chamadas, TV. Sabemos que há limites para não transformarmos o virtual em excessivo, pois pode se tornar um dispositivo iatrogênico para o processo de constituição psíquica dos pequenos sujeitos. Este é um alerta que coloca a todos – profissionais da saúde e da educação – em uma encruzilhada: “a bolsa ou a vida”, como nos diria Lacan4. Ao mesmo tempo em que necessitamos dos eletrônicos, por se constituírem neste momento de pandemia em um precioso instrumento de sustentação dos laços sociais, não podemos deixar nossas crianças entregues integralmente a eles: tvs, tablets e celulares.
Enfim, criatividade e reinvenção são palavras de ordem neste tempo tão delicado de isolamento social, devido à pandemia produzida pelo vírus Covid-19. Sendo assim, diferentes modalidades de intervenção: presenças virtuais, simultâneas ou não, telefonemas, vídeos, entrega de cestas básicas, visitas domiciliares ou tantas outras maneiras de sustentação dos laços transferenciais e desejantes. quantas puderem ser inventadas, estão sendo válidas e necessárias. A aposta é manter os laços entre educador, criança e família, sem perder de vista que um sujeito, para constituir-se como tal, precisa dos seus cuidadores – família e educadores- em ato e em presença corporal e afetiva, mas também, em tempos de isolamento social, em presença virtual.
[1]* Antes do surgimento das escolas infantis, as próprias residências eram locais nos quais pessoas leigas recebiam crianças para cuidá-las, cobrando por estes serviços.
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Dorisnei J. da Rosa é Psicóloga, Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Terapeuta em EP, Assessora de Educação e Coordenadora da Clínica em Tempo.
Maíra F. Brauner é Psicóloga, Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Assessora de Educação e Coordenadora da Clínica em Tempo*.
Artigo deRosa Maria Marini Mariotto
Artigo deEleonora Gomes