A concepção de um filho se inicia bem antes dele ser gerado, pois já está presente, há tempos, nas fantasias dos pais, genitores ou não. E tal decisão sempre apresenta singulares aspectos psíquicos, que tocarão profundamente os que se aventuram nessa escolha. De alguma forma, as vertentes da origem, sexualidade e morte aqui serão reveladas. É comum neste processo, que os pais se deparem com ambivalências e estranhezas que fazem parte do cenário que ali se constrói. Freud já falava deste fenômeno em 1919 – Estranho Familiar – que representa tudo aquilo que é familiar, mas, ao mesmo tempo, causa estranheza – manifestação do que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz.
Particularmente naqueles que buscam ter um filho com ajuda de especialistas, tal fenômeno pode apresentar-se com elementos mais intensos do novo e do desconhecido, do real que surpreende e assusta.
Na atualidade, estamos sob o impacto de biotecnologias, aparatos e aplicativos que abrem novas perspectivas no campo da procriação humana. Provocam fascínio e, ao mesmo tempo, nos arremessam em direção a desconfortáveis e estranhas questões. O gerar uma criança não depende apenas, das contingências do encontro sexual de um homem e uma mulher. Estamos em um novo tempo, arrebatados por vertigens tecnológicas, como diz François Ansermet, com situações inéditas que produzem um não-saber, e diante do qual é necessário elaborações.
O imprevisível e o mal-entendido estão sempre presentes no processo de concepção de uma criança, também, na conjugação das variáveis inconscientes e irrepresentáveis que permeiam o psiquismo humano. As novas formas de procriação que se anunciam através da Ciência têm apresentado procedimentos que pretendem o controle da concepção, e vão assim, na contramão do caminho da imprevisibilidade traçado até então.
Com a descoberta de métodos anticoncepcionais, fez-se um corte entre sexo, casamento e reprodução, sexualidade e procriação.
Hoje, outros contextos surpreendem: novas configurações de concepção, inclusive com a opção de congelar e descongelar óvulos ou espermatozoides em data escolhida. É possível gerar um filho a partir de projeto independente ou com três genitores, através de doador, barriga solidária, no ventre de um homem transgênero, e até mesmo com a inscrição em um site de coparentalidade. E, ainda, a possibilidade de anonimato de doadores de óvulos e espermatozoides deflagra que segredos, não-ditos e silêncios podem tornar-se, equivocadamente, alternativas na construção da história de uma criança.
No passado, o ser humano se distanciou da condição estritamente reprodutora e construiu uma sexualidade que, no momento, sofre abalos, quando se vê convocada a submeter-se, em certas circunstâncias, a ciclos biológicos. Assim, testemunhamos o sofrimento de casais em procedimentos para fecundação, com o desejo já dilacerado, diante de inúmeras tentativas de mapear o período fértil com datas e horas interessantes para ter relações sexuais.
A ciência pode ser colocada como a mãe potente que tudo pode e tudo sabe sobre o que dar a um bebê, contrapondo-se à mãe e ao pai real, que se apresentam com esterilidades, impotências e fragilidades para conceber e criar um filho. Nessas circustâncias, é frequente que os sentimentos que naturalmente emergem fiquem amordaçados, silenciados, impedidos de ter voz.
Os profissionais interessados em escutar o psiquismo e o desejo têm o compromisso ético de pensar as consequências decorrentes do que acontece no campo da Reprodução Assistida, e de criar condições para que as palavras referentes às situações vividas pelos participantes tenham chance de expressar-se. Não se trata de experiências banais e quaisquer: ter um filho, congelar ou descartar embriões, viver o luto de abortos e perdas em consecutivas gestações.
É importante elucidar qual desejo sustenta a demanda de um filho. Tornar-se pai, ser mãe, não é o mesmo que querer ter um filho. Este pode, inclusive, ser colocado pelos pais no lugar de um objeto de consumo, na modalidade da imitação social, ou até de um negócio contratual. Essa escolha nem sempre é consciente – pode estar comprometida com emaranhados inconscientes na busca de soluções. Se o bebê ocupa um lugar no desejo de alguém que se interessa por ele, como um ser particular, um sujeito existente e importante, as portas estarão abertas para relaçoes afetivas entre ele e seu entorno.
Longe de negar ou combater os valiosos avanços e conquistas da ciência, e de todos os ganhos que ela permite, trata-se de neles incluir a fundamental escuta do psiquismo dos sujeitos ali envolvidos. Daí, as palavras, sentimentos, angústias, medos, dúvidas, podem ser expressas e trabalhadas. O silêncio, o segredo e o ocultamento afetam a criança desde antes de seu nascimento – um abismo simbólico, que, como sabemos, tem evidentes consequências para sua constituição psíquica.
Psicóloga, Psicanalista, membro da Escola Freudiana de B.H./Iepsi, coordenadora em Minas Gerais do PREAUT Brasil. Diretora da coleção Aventuras e Travessuras na Linguagem da Editora Langage; Co-autora dos livros O Porão da Família; Entre Atos e Laços; Clínica Psicanalítica Contemporânea; Da Solidão; Texturas do Vazio em Psicanálise.
Organizadora do livro A Ética na atenção ao bebê- Psicanálise-Saúde e Educação e de O bebê e as palavras – uma visão transdisciplinar sobre o bebê.
Dedica-se à atividade clínica e à transmissão da psicanálise.
Artigo deDorisnei Rosa e Maíra F. Brauner
Artigo deRosa Maria Marini Mariotto