E a criança nasceu! Pronto, mais um humano pronto para essa louca aventura da existência e agora é só tocar o barco. Ledo engano! É após o nascimento que o efetivo processo de humanização começa – ou continua – na medida em que tornar-se gente significa transformar esses milhares de anos de evolução filogenética em um ser capaz de viver e conviver em sociedade, inserido numa cultura, com competências motoras e cognitivas, participando e compartilhando de uma posição na língua e no discurso e desfrutando de um psiquismo que sustente suas funções mentais.
Desse modo, o nascimento do bebê se revela menos como reta final do que como lugar de partida a um outro tempo de fundamentais transformações e, desde então caminhará de mãos dadas com o mundo externo que acolhe mais um recém-chegado. Mesmo nascido, o bebê, em seu primeiro ano, ainda está em statu nascendi.
Ainda mais porque nós, os humanos, somos os filhotes dos mais desamparados da espécie mamífera e sem a efetiva participação de um cuidador, ou seja, de um outro ser humano, jamais sobreviveremos, daí a constatação de que os humanos têm a infância mais longa e dependente. Portanto, pra que a gente vire gente é preciso ter gente que ajude nesse trabalho!
Ao nascer, o filhote humano conta com 100 bilhões de neurônios que constituem a base genética do cérebro e que vão se modificar a partir das primeiríssimas experiências entre esse organismo e o outro que o acolhe desde sua chegada ao mundo. É por isso que o cérebro é o único órgão do corpo que se modifica a partir de experiências extero e interoceptivas. Isso quer dizer que a determinação genética que organiza o cérebro do bebê é importante até a vigésima primeira semana de gestação. A partir daí e principalmente após o nascimento serão as experiências vivenciadas até os três anos de vida que ajudarão na ‘arquitetura do cérebro’, a ponto de se estender às capacidades e habilidades do futuro adulto.
Esses processos, denominados de ‘epigenéticos’, ativam genes específicos e controlam a diferenciação das células neurais, evidenciando assim a importância das experiências vividas com esse outro próximo cuidador, não somente na quantidade, mas, na qualidade dessas células neurais próprias para cada tempo específico da plasticidade cerebral.
Isso explica por que no início da vida há um período em que a plasticidade é máxima e os padrões de relacionamento intersubjetivos são gravados em redes neurais específicas. Experiências epigeneticamente inapropriadas ou inexistentes são capazes de gerar redes neurais menos adequadas para o desenvolvimento, deixando escapar o momento decisivo para que determinadas regiões do cérebro amadureçam e desenvolvam funções determinadas.
Podemos então afirmar que um ambiente propício para que um bebê se transforme em gente é aquele que se dá a partir do laço com outro ser humano, em que a palavra e o olhar ocupam lugares privilegiados, colocando em evidencia a qualidade desse outro cuidador. Destaca-se aqui o valor do adulto cuidador como operador das estruturas mentais do futuro humano.
Sendo assim, o adulto que acolhe e cuida de um bebe desde seus primórdios exerce uma função que se situa em dois registros: o da necessidade e o do desejo. Isso quer dizer que ao atender as necessidades fisiológicas de um bebê, o outro cuidador interpreta a partir do seu próprio código simbólico essas necessidades dando à criança um suporte simbólico. É o mesmo que dizer que, ao amamentar um bebê, a mãe ou qualquer outro que exerça essa função, não apenas dá leite, mas o alimenta de palavras.
É por isso que nos primeiros meses de vida observamos claramente uma série de modificações na criança tais como ritmo do sono e coordenação dos fluxos.
Uma primeira conclusão: só um humano humaniza, e esse processo altera profundamente o funcionamento fisiológico do bebê, o introduzindo a um funcionamento psíquico onde os afetos, o desejo e o amor serão reguladores subjetivos em operação junto com os reguladores biológicos e neurológicos.
Ainda que um bebê nunca confunda ‘matriz com filial’, sabemos que não é apenas a mãe biológica que detém a chave de entrada para o universo da humanização. Às vezes ela nasce sem essa chave, às vezes não há mãe para segurar a chave e às vezes ela divide essa chave com outros.
Sendo assim, mais do que uma pessoa, o cuidador é uma função, ou melhor, exerce várias funções! E quais seriam essas funções sem as quais a gente não vira gente?
A primeira é supor que dentro daquele bolinho de carne que acaba de nascer exista gente como a gente, ou seja, que o cuidador olhe aquele corpinho e veja nele um ser que já sente, que já tem gostos, que já ouve, entende e fala!! Só assim é que a gente é capaz de conversar com um bebê, pois pensando bem, um recém-nascido não faz nada disso, mas se ninguém antecipar essas competências elas não irão brotar sozinhas.
É por isso que a outra função que um humanizador de bebês deve ter é de supor que o bebê, mesmo muito pequeno, é capaz de pedir algo a alguém que vai poder interpretar esse pedido – que nem bem é pedido; é um choro, um resmungo, uma agitação corporal – e oferecer o que o adulto supõe que a criança esteja pedindo. Uma tarefa árdua e bem singular é essa de traduzir em palavras as ações do bebê, não é mesmo?
E pra isso é preciso que esse cuidador possa fazer o que a gente chama de ‘silêncio em si’, isto é, que para ser capaz de ouvir o que esse bebê ‘diz’ e quer é necessário prestar atenção, fazer um intervalo de onde poderá emergir uma resposta da criança. Parece que fica claro então que esse vazio, esse silêncio, é mais simbólico do que uma ação de deixar o bebê sozinho. É, portanto, uma alternância entre o silêncio – a ausência –; e a palavra – a presença do outro – que vai ajudando a criança a se tornar gente e agente de linguagem.
Fica claro então que humanizar um bebê não é fazer dele uma propriedade privada! Ao contrario, é a de preparar essa criança para viver as adversidades e aventuras que a vida impõe a nós com autonomia e independência. Por isso é que o laço bom é o laço que permite novos laços, indicando que a quarta e última função do cuidador primordial é o de ser suficientemente bom e suficientemente inútil, permitindo que nessa célula de segurança narcísica onde se instalam o bebê e seu cuidador primordial haja espaço para um outro estranho, um terceiro que vem lembrar que os bebês não são nossos, eles ‘estão nossos’ provisoriamente!
Ora, que todas essas funções sejam compartilhadas com várias pessoas não é novidade. No entanto, somente há pouco tempo é que se percebeu que cuidadores de creche, de abrigos, equipes de serviços de neonatologia para citar alguns exemplos, têm em seu oficio essa responsabilidade de humanização também, indicando que esse outro cuidador é plural, mas nunca deve ser anônimo, mas sim sinônimo de afeto e singularidade entre um adulto e uma criança, pois cada laço entre um bebê e seus cuidadores é único, pois cada um é um só!
Psicóloga, Psicanalista, Analista Membro da Associação Psicanalítica de Curitiba, Doutora em Psicologia Escolar e do desenvolvimento na USP, Pesquisadora FAPESP, Professora aposentada da PUCPR.
Autora dos livros: Cuidar educar e prevenir: as funções da creche na subjetivação de bebês (ed Escuta) e Como a gente vira gente (ed. InVerso). Organizadora e coautora dos livros: Por uma nova psicopatologia da infância e adolescência (Ed. Escuta), Gênero e sexualidade na infância e adolescência (Ed. Ágalma), Psicanálise e ações de prevenção na primeira infância (Ed. Escuta) e De bebê à sujeito: a metodologia IRDI nas creches (Ed. Escuta). Coautora do livro Desmanual para pais e avós: A função dos excluídos na educação dos bolinhos de carne.(Ed. InVerso).
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