Os mecanismos sensoriais humanos já são ativos desde o nascimento, sendo que alguns, como o auditivo, por exemplo, já iniciam sua função dentro do útero. Assim, quando o bebê nasce, ele já ouviu e sentiu muita coisa da experiência imediata com seu meio. Essas experiências sensoriais precoces concedem ao bebê mecanismos para se relacionar comunicativamente com os pais e todos que fazem parte da sua vida. Ele usa o olhar, a imitação, o choro, os movimentos reflexos para demonstrar seus desconfortos, suas necessidades e seu prazer. Pelas reações corporais iniciais do bebê, os pais ou aqueles que dele cuidam, também chamados de “Outros primordiais”, vão “interpretando” suas necessidades e se formando entre eles (pais e bebê), uma comunicação, que Ajuriaguerra (1986) chamou de “diálogo tônico-emocional”. Por exemplo: quando o bebê chora e a mãe o toma nos braços, contornando-o, o corpo da mãe se ajusta tonicamente para receber o corpo do bebê, ou seja, ambos – mãe (outro) e bebê – são afetados fisicamente, e o bebê encontra estabilidade nesse colo, nesse invólucro e se apazigua. Assim, os outros primordiais (quem cuida do bebê) aprendem muito rapidamente a distinguir os diferentes choros e comportamentos, e o bebê, também aprende rápido como ter a atenção desses Outros, criando o que chamamos de diálogo tônico-emocional (Ajuriaguerra, 1986). Esse momento de diálogo tônico- emocial se dá quando a mãe entende que o bebê precisa naquele momento do seu colo para se sentir seguro e o bebê, se acalma na hora que é acolhido, contornado nos braços da mãe se estabelece um diálogo, uma comunicação.
Então, o bebê vai construir, nessa relação, agarramentos, aderências ao outro com o olhar, com o corpo, com a palavra. E a partir daí, por meio de explorações sensoriais com a boca, com as mãos, com contrações e relaxamentos tônicos, o bebê vai adquirir as posturas, as orientações, as focalizações, realizando esquemas, que se integrarão formando o esquema corporal. Esse esquema é a percepção dos espaços do corpo (BULLINGER, 2008) – frente, atrás, os lados, o dentro, o fora do corpo – e sua capacidade de reagir e interpretar os fluxos sensoriais (os cheiros, os sons, os gostos, à luz, o calor, a dor e o movimento). No entanto, no bebê humano, a interação comunicativa com os outros primordiais (os pais ou aqueles que dele cuidam) é que vai favorecer essas explorações e construir um bom esquema corporal. Sem o OUTRO não há EU… (WALLON, 2005).
Essa comunicação será determinante para a estrutura psíquica da criança, favorecendo a aprendizagem, a aquisição dos sistemas simbólicos (linguagem falada e escrita) e a cognição.
A psicomotricidade é uma modalidade clínico-terapêutica que considera o corpo e suas reações como uma forma de comunicação e interação com os outros. Ou seja, o corpo é portador de linguagem por meio de seus gestos (ou na falta deles), de suas expressões (ou na ausência delas) e de suas posturas e comportamentos. O corpo comunica os estados emocionais do sujeito muito antes de qualquer palavra.
Então, a psicomotricidade considera o corpo em ação, em movimento como tendo uma dupla polaridade. Primeiro, a motricidade como resposta de uma organização cerebral que se inicia com as informações sensoriais que são analisadas, interpretadas e processadas, e devolvidas ao meio externo como movimentos práxicos, tais como: falar, segurar o lápis, escovar os dentes, correr para não tomar chuva, e outras inúmeras ações que fazemos o tempo todo (LURIA, 1986); e segundo, como linguagem, de um corpo que (re)age, na interação com o outro (LEVIN, 1997).
Nessa premissa, a clínica psicomotora, aposta nas brincadeiras que favorecem os contrastes tônicos, os equilíbrios e desequilíbrios, a variabilidade sensório-motora, os balaços, os jogos simbólicos e de faz de conta, permitindo que a criança explore o prazer do seu corpo em movimento e possa, pela plasticidade neural e pela ativação de memórias afetivas, instrumentalizar corpos incontidos, inibidos, desintegrados e esquecidos. Mais do que inabilidades corporais, a psicomotricidade considera a construção da identidade de um sujeito que habita um corpo, modelado por sua história, por seus afetos, pelas suas experiências com o outro.
A aplicação clínico-terapêutica da psicomotricidade no Brasil ainda é pouco compreendida e diferenciada de outras intervenções que lidam com questões ligadas ao corpo, pois, a cultura de atendimento infantil que se estabeleceu por aqui é da escola americana, onde o processo terapêutico é focado no sintoma, então, um profissional trata da linguagem, outro dos comportamentos, outro da interação, etc. Existe uma fragmentação da criança, onde a meta é que o corpo funcione.
A psicomotricidade está atenta à instrumentalização para dar subsídios para a criança brincar com seus pares; sentar para ouvir uma história; entender o que lhe é pedido; brincar de boneca dando comidinha a ela; comunicar-se por mímica, gestos, pela fala, pela escrita, etc. Ou seja, ajudar a criança a adquirir repertório cognitivo, motor, social e afetivo, para usar na aprendizagem escolar, na vida social, nas atividades cotidianas e nos relacionamentos. Contudo, não apenas isso, o atendimento pressupõe antes de tudo: saber quem é aquele do qual se fala, antes de dar nomes como vemos habitualmente.
Essa criança é autista! Essa criança é hiperativa! Essa criança é desatenta! Essa criança não aprende!
Na psicomotricidade, a importância do sujeito (criança) na construção da identidade deve ser o foco da terapia. Ou seja, não se vai ensinar a criança como se conter, ou melhorar uma habilidade, ou comunicar-se com os outros, a função do terapeuta é de mediador, de trazer à tona o que há de próprio desse sujeito, de promover a relação na transferência. A partir daí, gerar situações sensório–motoras, perceptivas, simbólicas, nas quais a criança age e se conecta com a situação com o repertório que possui, e, pela experiência afetiva, prazerosa, desafiadora, enfim, faz novas conexões e amplia seu repertório. O terapeuta pressupõe um saber no outro, e não, submeter o outro ao seu saber. Logo, na clínica psicomotora, como na psicanalítica, a aposta é na presença do sujeito, na antecipação de que não é só corpo é corpo de um sujeito, único e particular.
Assim, manifestações como alterações tônico-posturais, lentidão na movimentação corporal, pobreza de repertório para soluções de problemas, comportamentos motores repetitivos, apatia, ausência de linguagem visual e gestual, entre outras, podem ser sinais precoces que sugerem que algo não esteja bem no desenvolvimento da criança. A ausência de movimento intencional, de seu planejamento e de sua harmonia devem ser sinais de alerta para pais, professores, cuidadores etc., pois, a intervenção precoce pode favorecer, sem precedentes, o melhor prognóstico.
Doutora e Mestre em Ciências: Educação e Saúde pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-2012/2017); Educadora Física (ESEF, 1985), Especialista em Psicomotricidade (FMU, 2007) e com formação em Distúrbios de Aprendizagem (Instituto Langage, 2009); autora dos livros “Do Andar ao Escrever, um caminho Psicomotor”(2009) ; “Psicomotricidade & Educação Física – quem quer brincar põe o dedo aqui”(2010); “Caderno de escrita infantil – progressão grafomotora para a aprendizagem da escrita”(2014), “Matematizando – prática psicomotora na Educação Matemática”(2014) e “A neurociência sob o olhar da psicomotricidade” (2019).
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