Como saber se um bebê apresenta sinais de risco ao desenvolvimento?
Atualmente há uma epidemia de crianças diagnosticadas com os mais diversos transtornos. Alguns deles muito conhecidos como TEA (Transtorno do Espectro Autista), TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) e mais recentemente, TOD (Transtorno Opositivo Desafiador). Estes diagnósticos na sua maior parte, acontecem após os 3 anos de idade, quando já existe um quadro estabelecido. Neste momento a criança é submetida à intervenção de diversos especialistas: psicólogos, fonoaudiólogos, neurologistas, psiquiatras, fisioterapeutas, psicopedagogos, terapeutas ocupacionais. Cada um cuida de um pedaço e se ocupa da criança para torná-la funcional.
As pesquisas sobre Epigenética e Neuroplasticidade fundamentam o trabalho na Clínica com Bebês em Intervenção Precoce perante Riscos no seu Desenvolvimento. De um lado a epigenética demonstra que a expressão dos genes depende de fatores ambientais, isto quer dizer, que mesmo que uma pessoa tenha no seu código genético, DNA, o genoma de determinada patologia, ela só irá expressar-se dependendo de fatores externos. O ambiente de forma geral, passa à ser determinante para que o gen se expresse ou não, ou, ainda quando se trata de genes portadores eles mesmos de síndromes patológicos, o modo em que essa criança seja abordada e orientada vai determinar a proporção de expressão fenotípica de sua patogenia.
Outro fator é a Neuroplasticidade. As pesquisas em neurociência revelam a capacidade adaptativa do sistema nervoso para solucionar problemas. Até um ano e meio de vida as células nervosas são capazes de fazer milhões de conecções sinápticas. Para estabelecer comunicação, os neurônios se ligam facilmente a um outro neurônio, mesmo que tenha em seu caminho uma célula nervosa com problemas. Contudo, após essa idade em que as conexões neurais se estabelecem com maior facilidade (novas conexões aparecem durante a vida toda embora nunca em tal velocidade e proporção), os neurônios que não foram utilizados ficam sem utilização e diminuem suas conexões devido a Poda Neural, quando as atividades de transmissão diminuem permanecendo aquelas que foram estabelecidas até então.
Na corrida contra o tempo, o que fazer para saber se um bebê apresenta sinais de que algo não vai bem? Convidamos o professor Dr. Alfredo Jerusalinsky, psicanalista, Especialista e Mestre em Psicologia Clínica e doutor em Psicologia da Educação e Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo, para nos esclarecer sobre o assunto. Natural da Argentina veio para o Brasil e fixou-se em Porto Alegre onde há mais de 40 anos atende crianças com problemas no desenvolvimento. Trabalha com uma equipe interdisciplinar na Fundación para el Estudio de los Problemas de la Infancia (FEPI – Argentina) e no Instituto Lydia Coriat, onde também forma profissionais no campo da saúde mental.
No ano de 1999, por solicitação da Pediatra psicanalista Dra. Josenilda Brandt, na época representante do Ministério da Saúde, foi convidado a coordenar uma pesquisa em todo território nacional que envolveu mais de 250 profissionais da área da saúde, em 10 capitais brasileiras. Esta pesquisa além de contar com o apoio do Ministério da Saúde, contou também com o apoio do CNPQ, da FAPESP e do Instituto de Psicologia da USP. Essa pesquisa tinha como objetivo construir um protocolo com indicadores capazes de ajudar a detectar risco psíquico para o desenvolvimento durante a consulta pediátrica de rotina e habilitar para isso também à diferentes agentes de saúde e cuidados primários que lidam com o atendimento de bebês.
1. Revista Crianças: Professor Alfredo Jerusalinsky, por que se iniciou esta pesquisa?
Jerusalinsky: Existia um consenso sobre a importância da detecção precoce, havia apenas instrumentos na pediatria para verificação do desenvolvimento e maturação orgânicos. Instrumentos de ordem biológica, orgânica, física, de detecção de risco no desenvolvimento, das funções cerebrais: a percepção, a motricidade, os hábitos, os ritmos: fome e saciedade, sono e vigília. Contudo não havia, até então, um instrumento no qual fosse possível observar que algo não estava bem do ponto de vista mental, especialmente no concernente aos processos de constituição do sujeito psíquico. Então o lógico era que construíssemos esses instrumentos. Em 1990 já havia um consenso internacional de que era necessário abordar as crianças com problemas de desenvolvimento e ou com risco psíquico e problemas mentais com anterioridade à consolidação de um quadro psicopatológico ou à produção de danos ou inibições para a aquisição das funções próprias do desenvolvimento. Havia que abordá-las quanto mais cedo melhor, justamente porque os resultados das intervenções precoces eram muito mais eficazes e de grande resultado do que as intervenções tardias. As descobertas científicas no campo do neurodesenvolvimento, no campo da genética e no campo da psicanálise, depois de 120 anos de prática clínica com crianças vinham a dar razão e fundamento sobre importância de abordar essas manifestações com potencialidade patogênica bem precocemente. Os resultados dessas intervenções precoces eram muito melhores comparadas com os efeitos das intervenções tardias.
2. Revista Crianças: Quanto tempo durou este estudo?
Jerusalinsky: Este estudo durou aproximadamente 10 anos, de 1999 a 2009, contou com a participação de Paulina Schmiedt, Leda Bernardino, Cristina Kupfer, Domingos Infante e eu mesmo na direção científica. Inicialmente participaram do estudo cerca de 1300 crianças na faixa etária de 0 a 3 anos. Ao final da pesquisa, foram validados 31 Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil- IRDI, utilizando uma amostra de 726 crianças entre 0 a 18 meses e o seguimento dessas crianças durante quatro anos possibilitou a construção de outro mapa: o AP3, Avaliação Psicanalítica a partir dos 3 anos.
3. Revista Crianças: Já existia alguma referência sobre a importância da detecção e intervenção precoce?
Jerusalinsky: Desenvolvemos e já tínhamos instrumentos bem desenvolvidos enquanto intervenção precoce. A estimulação precoce enquanto uma perspectiva psicanalítica vem sendo desenvolvida desde o início da década de 70. Então havia a Dra Coriat que foi a minha mestre, o Dr. Julian de Ajuriaguerra, do Hospital Henri Rousell, em Paris já trabalhávamos com isso naquela época e junto com uma vanguarda neuropediátrica em Barcelona, no Hospital de Paralíticos cerebrais de Mont Blanc, Em Londres com uma incipiente equipe interdisciplinar orientada pelo Dr. Brinkwuort no campo da pediatria, o neuropediatra Dr. Antonio Lefevre em São Paulo junto com a Psicóloga Beatriz Lefevre trabalhando em estimulação precoce com crianças com síndrome de Down. Enfim havia um terreno rico tanto clínico, como experimental e de pesquisa, o que colocou em jogo uma série de critérios e de conceitos consolidados de modos de intervenção clínicos na estimulação precoce e na intervenção precoce, antes de se configurarem quadros psicopatológicos em crianças que já apresentavam risco orgânico ou situações de vulnerabilidade psíquica.
4. Revista Crianças: O senhor poderia explicar como foram desenvolvidos estes indicadores?
Jerusalinsky: A equipe de pesquisa utilizou-se dos dados obtidos durante os atendimentos de rotina da pediatria e construiu instrumentos que fossem flexíveis e facilmente aplicados pelo médico durante as consultas de rotina do bebê. Para tanto a escala geral de 0 a 18 meses de vida, foi dívida em 4 faixas etárias distribuindo os indicadores em intervalos de quatro meses: de 0 a 4 meses incompletos, de 4 a 8 meses incompletos, de 8 a 12 meses incompletos e finalmente de 12 a 18 meses. Estes indicadores foram construídos a partir da observação das crianças com seu cuidador, geralmente a mãe, mas não sempre nem somente restrito à esta, e um rastreamento de consultoria mediante a colaboração de experts. Inicialmente eram 51 indicadores e, mediante 3 experiências piloto foram selecionados finalmente 31 para participar da pesquisa de acordo com os critérios de sensibilidade, especificidade, pertinência, capacidade de registro e facilidade de aplicação.
5. Revista Crianças: Qual a diferença deste protocolo em relação aos que existem atualmente e são aplicados as crianças que apresentam algum sinal de sofrimento?
Jerusalinsky: Se é um indicador extremamente rígido, como são os indicadores orientados pela via comportamental, isso faz obstáculo para que as questões subjetivas possam emergir. Se você pergunta a criança costuma subir e descer escadas de forma repetitiva, a resposta é sim ou não. Ela gira sobre si mesma frequentemente ou da saltinhos frequentemente? A resposta é sim ou não. Não há, nesse modo de enunciar esses indicadores, uma interrogação que permita às pessoas envolvidas nessa avaliação aportar as razões eventuais, os significados, os motivos circunstâncias, o contexto, a série em que esses comportamentos acontecem. Certamente, embora em nosso estilo de indagar privilegiemos a subjetividade, precisamos, também, de certa objetividade para que o aplicador do instrumento não se sinta perdido, e ter, ao mesmo tempo uma certa flexibilidade, para que as questões subjetivas possam emergir e serem registradas, caso contrário você não estaria em um terreno de prevenção , mas estaria em um terreno de registro com finalidade diagnóstica. Não se tratava de construir um instrumento hábil para estabelecer critérios ou medidas epidemiológicas onde o dado precisa ser objetivo, mas, de um instrumento capaz de detectar se as operações necessárias para a formação de um sujeito estão acontecendo, um instrumento capaz de manifestar o significado que tem para o bebê as coisas e as pessoas. Ou seja, se estas operações de formação de isso que nós chamamos de sujeito psíquico estão ocorrendo. Sujeito quer dizer alguém capaz de compreender em que mundo ele vive, o que ele pode esperar do outro e o que o outro espera dele; por mais que esta compreensão seja elementar, claro, nesta idade precoce.
6. Revista Crianças: Qual o objetivo destes protocolos?
Jerusalinsky: O que esses instrumentos efetuam é indagar e pesquisar em cada criança se ela está recebendo o estímulo , a compreensão, a autorização , a capacidade, o impulso por parte de seus cuidadores a entrar, justamente ,na linguagem, nas significações, no mundo; entrar no mundo da fantasia que é fundamental para apreender que significam as coisas. Porque enquanto para macacos uma banana é somente algo a ser comido, para nós humanos uma banana tem infinitos significados e forma parte de inúmeras fantasias. Podemos transformar uma banana e o ato de comer em uma brincadeira, uma piada, uma aventura. Uma mãe habilidosa transforma a massa, enfim a batata em um aviãozinho que vai entrar na boca e é por esta via de atribuições de significações que naturalmente as coisas não têm, pelo percurso no mundo da fantasia que nós entramos no mundo do humano, ou seja, no mundo da linguagem.
7. Revista Crianças: Se a interação com o adulto- cuidador é fundamental, o que devemos pensar se hoje adultos e até bebês vivem mergulhados nas telas dos telefones celulares?
Jerusalinsky: Vivemos imersos em um mar de palavras, tanto escrita como nas cenas teatrais, nas telas eletrônicas, ou no celular. Este pequeno pedaço de matéria, é fantástico, causa fascínio. Uma das condições de risco que hoje as crianças vivem é o celular. É tão fascinante que apertando dois botões eu entro em um mundo totalmente novo e totalmente estranho. É uma porta de entrada a um mundo no qual não há nenhuma diferença entre o simbólico, o imaginário e o real. A criança quando aprende este caminho não quer sair nunca mais. Mas acontece que ela não vai viver lá dentro dessa tela, ela vai viver no mundo, que tem gente, e as pessoas são imprecisas e menos infinitas que um celular na significação.
8. Revista Crianças: Existe alguma implicação para a criança pelo uso das telas?
Jerusalinsky: A tela eletrônica, independentemente de suas variantes enquanto os artefatos em que ela se apresenta sempre funciona como um espelho. Um espelho cuja particularidade consiste em que quem nele falta é precisamente o sujeito que nele se contempla. Paradoxalmente é precisamente sua ausência que exige desse sujeito que ele se identifique aos personagens que nela se apresentam para evitar a confirmação de sua ausência mediante o recurso de figurar projetivamente no elenco que habita esse outro mundo. Eis aí que reside o formidável poder da tela, sendo que quando ela é interativa sua capacidade de sucção do sujeito é tal que ele fica capturado do outro lado da superfície de projeção (precisamente pela ilusão de poder que as manobras interativas lhe prestam). O efeito na pequena criança é de substituição parcial ou total dos personagens de sua vida real pelos personagens de sua vida virtual, e a substituição das linguagens. E devemos apontar que essas consequências não são privativas da pequena criança já que registramos a crescente extensão dos efeitos coletivos das adições eletrônicas.
9. Revista Crianças: Como os indicadores de risco podem ajudar na prevenção?
Jerusalinsky: A psicanálise descobriu em 120 anos de pesquisa, de trabalho clínico, com centenas de milhares de pacientes, milhares de casos publicados, descobriu como se deve proceder, o que precisa a criança que seja feito para que sua inscrição como sujeito no campo da linguagem aconteça. Esses instrumentos o IRDI e o AP3 são para vigiar, para perceber se estas operações que precisam ser feitas estão sendo levadas a cabo ou não. Se não estão tem que restitui-las e nessas épocas precoces tanto desde o ponto genético , pelas descobertas da epigenética, quanto do ponto de vista neurológico pelas descobertas da neuroplasticidade, nosso cérebro, nosso sistema nervoso central está aberto a estas inscrições, o que permite corrigir rumos equivocados na medida em que nessa época da vida o cérebro aceita modificações muito facilmente.
Psicanalista. Doutor em Educação e Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (2006). Mestre e Especialista em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Graduado em Psicologia pela Universidade de Buenos Aires. Lecionou na Universidade de Buenos Aires, foi professor convidado na PUCRS, UNISINOS e USP, Fundador da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Analista Membro da Association Lacaniènne Internationale (ALI) Faz direção, assessoramento e supervisão da Fundación para el Estudio de los Problemas de la Infância da República Argentina (FEPI) e no Centro Clínico Interdisciplinar Dra. Lydia Coriat. Assessor de Clínica e Pesquisa do IPREDE (Instituto de Prevenção no Desenvolvimento e da Desnutrição Infantil – Ceará).
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