O autismo e seu espectro, como complexo quadro que ocupa lugar de nossa atenção na cena contemporânea da infância, nos convida sempre a um olhar para a criança. É verdade que há também empenho em ouvir as narrativas das mães e pais de crianças que recebem o diagnóstico de autismo, embora haja pouco espaço de escuta e cuidado para eles, corajosos indagadores desse tortuoso caminho em busca de desenvolvimento para seu filho.
É recorrente na escuta aos pais, que o tempo anterior ao diagnóstico seja referido como um tempo de não-saberes, em que as dificuldades do filho, ainda bebê, na interação com o outro e na insistência da linguagem em tardar, são percebidos pelos pais como indicativos de que algo não estava bem.
As experiências de insistência na busca por reciprocidade afetiva, no contato olho a olho, no brincar junto, na espera por ouvir qualquer palavra que conte como é aquela voz tão esperada, começam a trazer aos pais uma sensação de que os seus não-saberes precisam de resposta, uma resposta que está em outro lugar e não mais na sua história com o filho.
Mesmo para as crianças que apresentam os sinais do quadro autístico mais tardiamente e que escreveram com sua família um enredo sem as marcas do que a medicina chama de critérios diagnósticos até por volta de 12 meses, o diagnóstico parece ter poder retroativo pela narrativa parental: os sinais do espectro passam a ser procurados em cada gesto do bebê guardado na memória dos pais.
As características do autismo se dão principalmente no campo do encontro com o outro, com implicações que se manifestam especialmente na recusa. O desvelamento da causalidade dessa recusa não tem o poder de cessá-la e nem à angústia por ela causada, mas é poderosa como forma de explicação.
Respondido o enigma do diagnóstico, tudo ganha um “porquê”: todos os comportamentos da criança são traduzidos numa lógica organizada pelos manuais diagnósticos do campo médico, repleto de saberes até então desconhecidos pela família. Traduzir tantas coisas que antes escancaravam o desconhecido dos pais parece tão apaziguador, mas também pode ter efeitos que colocam em risco a subjetividade.
Ao discurso dos pais é entrelaçado o discurso médico-científico, que privilegia explicações fundamentadas em critérios diagnósticos, que embora pareça oferecer uma explicação sobre alguns aspectos do “como é aquela criança”, comumente determina seu destino respondendo à questão “quem é a criança autista”.
Vorcaro (2011), em seu texto sobre os efeitos do diagnóstico classificatório de crianças, avaliadas sob a referência de uma psicopatologia que passou por uma objetivação sistematizada em manuais diagnósticos, nos diz que esse tipo de olhar resulta numa visão reducionista da criança, que faz com que ela passe a pertencer ao saber médico e perca sua linhagem cultural originária. Essa redução da criança a um ser pertencente a linhagem médica faz com que o prognóstico de autismo seja referência do que será o seu futuro, determinando o que se pode esperar dela, numa triste previsibilidade que pode apagar muitas expectativas sobre a sua subjetividade, tendo então o autismo como único destino.
Merlleti (2018) nos chama a atenção para o que ela chama de “objetalização da criança”, que aprisiona a criança em lugares discursivos que limitam sua subjetivação tanto nas relações familiares, quanto nas vivências escolares e do próprio desenvolvimento. Objetalizar a criança pode tornar objeto também a subjetividade dos pais e da escola, que nessa relação com o diagnóstico traduzem como manifestação do autismo, todas as manifestações da particularidade da criança. Os profissionais das áreas terapêuticas não estão imunes a esta objetificação, respondendo a essa lógica através da classificação e condutas de normalização.
Sobre o efeito retroativo do diagnóstico sobre a história da criança, me lembro de um caso em que o pai contou, emocionado, como o entristeceu receber aquela notícia de que sua filha era autista, especialmente quando soube que o balançar das mãozinhas dela, tão bonito para ele, presentes sempre que ele a percebia empolgada com alguma brincadeira eram “apenas estereotipias”. Ressalto aqui que não discurso contra o diagnóstico e nem contra o fazer de qualquer profissional da saúde, mas discurso em favor da questão: como garantir a singularidade da criança autista e a autoria de sua história quando tudo dela passa a ser autismo?
Em que tempo dessa narrativa contemporânea os pais poderão se reapropriar de seu saber sobre aquele filho, tão único, tão particular, tão seu, apesar do autismo e seu espectro? Acredito que nós, profissionais, convocados a sermos aqueles que falam desse “suposto lugar de saber” temos um papel fundamental nessa reapropriação, que requer, sobretudo, nossa desapropriação.
Quando somos chamados a falar, do lugar “daquele que sabe”, através dos nossos critérios, avaliações e métodos. É preciso sempre lembrar do “saber dos pais sobre seu filho (a)”, escutar sobre o que só a mãe e o pai podem saber e dar um lugar para a história, que só eles podem contar e escrever. E, está visceralmente conectada com a certeza de que existe muito mais possibilidades para um sujeito do que seu diagnóstico.
Com o desejo de atender à toda angústia familiar, promessa impossível de sustentar, muitas vezes o profissional se desencontra com a possibilidade de oferecer um lugar que transcenda seu fazer regulador dos comportamentos. Relembrar aos pais que há, para além de todos os critérios diagnósticos, uma inexorável subjetividade, particular a cada criança e inclusive ao seu filho autista, devolve a eles e à criança a possibilidade de protagonismo no enredo dessa história, na qual o discurso médico-científico pode ser um importante verbete, mas sempre insuficiente para falar sobre a imensidão do encontro, para o qual deve existir memória e futuro para além do autismo.
Professora do Curso de Psicologia da Universidade São Francisco. Mestre em Saúde, Interdisciplinaridade e Reabilitação pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, programa pelo qual cursa o doutorado. Tem experiência em Psicologia nas áreas clínica, social e da saúde com ênfase nos temas: autismo, psicanálise, deficiência e relações familiares.
Artigo deDorisnei Rosa e Maíra F. Brauner
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