A adoção é uma forma de filiação instituída por lei, que tem caráter irrevogável e coloca pais e filhos em condições jurídicas idênticas à filiação e à paternidade biológica. Mas existem alguns tipos que exigem atenção especial e acabam sendo chamadas de “adoções difíceis”, justamente por requererem mais cuidados, como é o caso das tardias, como são chamadas as adoções de crianças com mais de dois anos. Nesses casos, as crianças vivenciaram algum tempo de desligamento da família biológica até a colocação na família adotiva. Na maior parte dessas adoções, a criança passou por instituições de abrigo (Serviço de Acolhimento Institucional Para Crianças e Adolescentes – SAICA) e isso constitui um tema importante para os que lidam com o assunto, pois remete diretamente ao problema do abandono.
A partir da destituição do poder familiar, a criança encontra-se sob a responsabilidade do Estado em uma instituição a quem cabe a devida cautela sobre seu destino. E nesse futuro deve haver um mínimo de garantias de que seu encaminhamento para uma nova família não incorra no risco de uma outra exposição a rompimentos e abandonos. A experiência mostra que a ocorrência de desistência do processo de adoção de fato ocorre, trazendo situações de muita angústia não somente às crianças, mas também aos pais que se veem decepcionados com seu projeto de adotar. Dessa forma, o processo de avaliação serve também como um cuidado com os próprios candidatos a pais, no sentido de entrar em contato com suas reais motivações e até mesmo conhecer melhor as dificuldades da adoção de uma criança, evitando possíveis decepções e reiterando seu desejo de adotar. O processo de habilitação deve estar baseado na ajuda aos pais que querem adotar, prestando-lhes apoio em sua busca.
Os técnicos irão procurar no cadastro de crianças disponíveis na comarca ou foro regional aquelas que atendam ao perfil pretendido pelos candidatos a pais, respeitando sua posição na ordem de inscrição. Uma entrevista é marcada para que o pretendente obtenha as informações sobre a criança e, em caso de aceite, o encontro será acertado na Vara ou no abrigo. A partir desse momento, respeitando as condições da criança, a qual pode necessitar de uma aproximação mais gradativa, o pretendente poderá ficar com a criança sob o regime de guarda. A guarda pode ser mantida por até um ano, segundo determinação do juiz, ao fim do qual deve sair a sentença de adoção. Esse período, chamado de estágio de convivência, é acompanhado pela equipe psicossocial, por meio de entrevistas periódicas.
A ideia de seleção de candidatos costuma gerar desconforto e questionamentos por parte de muitos adotantes já que, para tornarem-se pais biológicos não há necessidade de avaliação, trazendo indagações sobre a obrigatoriedade dessa seleção para quem decide adotar. No entanto, os profissionais que têm experiência com os processos de adoção consideram que a seleção de candidatos, quando bem conduzida, aumenta as possibilidades de sucesso na adoção.
A ansiedade vivida por pais que buscam a adoção é significativa, pois se veem na necessidade de enfrentar mais esse processo, muitas vezes precedido por um longo e angustiante percurso de tentativas frustradas de ter filhos naturalmente. Assim, enfrentar mais um período de avaliações e incertezas sobre a possibilidade de exercer a desejada paternidade pode tornar-se muito desgastante e toda a abordagem junto aos candidatos precisa levar em conta essas delicadezas.
As motivações dos adotantes podem ter grande importância quando interferem no lugar de inserção que a criança adotada ocupará no psiquismo dos pais. Para Ozoux-Teffaine (1987), a adoção, mesmo que de crianças maiores, pode trazer com frequência o desejo subjacente de um herdeiro que proporcione o sentimento de continuidade à própria vida, vindo também atender aspirações de completude narcísica. Para Peiter (2011), as concepções do filho como continuidade de si, como herdeiro e prolongamento da própria existência, que trazem resíduos do narcisismo dos pais, podem facilitar o processo de identificação entre eles e a criança. Assim, exercem função essencial no estabelecimento de um período idílico, de ilusão primordial inerente ao papel da família como anfitriã da criança recém-chegada.
Numa sessão com os pais adotivos de C. de 6 anos, que já era atendida por mim antes do processo de adoção, contam como a menina tem características parecidas com o pai, pois é bastante curiosa e gosta de aprender coisas novas.
Ao falarmos de pais que desejam muito adotar bebês com aparência e biotipo mais próximos possíveis do padrão de suas famílias, percebemos a necessidade de um filho que possa vir a atender a desejos narcísicos. Este é um desejo genuíno e frequentemente presente na vontade de ter filhos, sejam eles biológicos ou não.
Já em relação às crianças maiores, existe uma série de receios na adoção manifestada por medo das sequelas deixadas pelo abandono e pela institucionalização; das influências provocadas pelo ambiente de origem; das dificuldades de adaptação; da criança guardar ressentimentos de sua pré-história e de que as lembranças da família de origem impeçam a criação de novos vínculos familiares.
K. e A. candidatos a pais de M. de 7 anos, que já fora devolvida duas vezes, me perguntam preocupados se as angústias que a futura filha viveu quando ficou alguns dias com eles nas festas de fim de ano passariam com o tempo. Nessa sessão pudemos falar sobre a importância do acolhimento que eles puderam dar para o seu sofrimento e que a partir disso o laço entre os três se fortaleceu.
A questão que surge aqui diz respeito a um difícil manejo entre o que esperam os pais e a necessidade da criança de ser acolhida em sua individualidade. Tocamos em um aspecto paradoxal das funções parentais que deve apropriar-se narcisicamente do filho, mas também permitir sua existência singular como um indivíduo separado.
Freud (1914) postulou a existência do narcisismo como um estágio absolutamente necessário ao desenvolvimento emocional do indivíduo, e compreende que restos dessa etapa persistem ao longo da nossa vivência, revelando-se em diversos aspectos da vida adulta.
Assim, a construção do psiquismo humano deve passar, em algum momento, por um tipo de inserção narcísica da criança diante dos olhares paterno e materno, e isso é muito bem-vindo durante um certo momento de vida. A organização do psiquismo requer momentos iniciais primordiais de ilusão narcísica e onipotente (Winnicott, 1967), em que o narcisismo incipiente da criança se mescla ao dos pais, para que numa etapa posterior, haja a possibilidade de lidar com as desilusões inerentes ao encontro humano. Ocupar esse lugar no narcisismo dos pais, para mais tarde desocupá-lo, constitui questão crucial da existência humana.
No caso de adoção de crianças maiores este é um desafio redobrado para os pais. Ajudar a criança na organização emocional que inclua sua pré-história pessoal e o próprio psiquismo em processo de construção é essencial. Os cuidados parentais adquirem um papel de suma importância na busca pelo acolhimento e reconhecimento da criança em suas particularidades.
Tal inserção familiar nos remete à necessidade de a criança receber um tipo de olhar que lhe ofereça um sentido de existência e a demova do estado de abandono. O abandono aqui mencionado diz respeito a essa ausência do olhar de um outro, capaz de dar à criança sentido a sua existência. Esse olhar se faz necessário tanto com filhos biológicos quanto adotados.
No momento da desilusão algumas dificuldades podem surgir. Na adoção, há dores narcísicas a mais a serem elaboradas, tanto por parte das crianças quanto dos pais, que não tiveram atendido seu desejo por um filho biológico. O luto perdido do narcisismo dos pais é muito importante para a aceitação da individualidade de qualquer filho. A adoção de crianças maiores implica uma capacidade maior de tolerância a dores narcísicas, pois a criança que está chegando também tem seu próprio processo de elaboração de perdas para superar, e a ajuda dos pais é fundamental.
Psicanalista, Psicóloga e Mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP.
Membro do Departamento de Psicanálise com Crianças dos Instituto Sedes Sapientiae.
Coordenadora Clínica do Núcleo Acesso do Instituto Sedes Sapientiae.
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