O acolhimento institucional é uma medida protetiva prevista no ECA para as crianças e adolescentes que foram separados de suas famílias biológicas, por estas não reunirem, temporariamente, condições para cuidar de maneira integral de seus filhos.
Retirar uma criança da família de origem, embora seja uma medida de proteção é, de certa maneira, uma violência. A entrada na instituição é momento de separação e afastamento de todo o universo conhecido: família, vizinhança, lugares, amizades e, implica em rupturas de vínculos. Assim que a criança é acolhida, o Serviço de Acolhimento deve iniciar um trabalho junto à família visando criar condições de superação da situação que gerou o acolhimento e a reintegração da criança à família biológica ou família substituta.
A reintegração familiar não é um processo fácil nem rápido; para evitar uma visão reducionista do abandono é preciso dar testemunho que as famílias que entregam seus filhos são famílias abandonadas pelas políticas públicas.
No trabalho de supervisão nos Serviços de Acolhimento temos acompanhado casos de destituição familiar, de aproximação de crianças e pais candidatos à adoção e, por vezes, desistências destes pais candidatos durante o período mesmo de convivência inicial. Cada uma destas etapas produz fortes impactos na criança; a atuação dos profissionais dos Serviços será decisiva em cada uma delas, por serem etapas que mudam o destino de cada criança.
Neste artigo gostaria de reunir algumas intervenções necessárias junto a essas crianças neste momento repleto de tantos sentimentos: o luto pela separação da familia biológica, a abertura para novos vínculos e talvez uma nova família e, com a adoção, a saída do Acolhimento que representa uma nova ruptura de vínculos para as crianças que nele viveram. São crianças expostas a várias separações, rupturas e descontinuidade nos vínculos. Como os profissionais das instituições de Acolhimento podem atuar nestes momentos junto às crianças?
O entendimento que as equipes dos Serviços de Acolhimento têm do período em que a criança permanece na instituição produz efeitos na forma como a criança representará o período vivido na instituição. Conceber o SAICA como um mal necessário é diverso de pensá-lo como lugar de cuidado e crescimento para as crianças e produzirá efeitos diferentes nas crianças que ali habitam. Os profissionais que lá trabalham precisam se dar conta da importância de seu trabalho junto às crianças.
D.W. Winnicott, pediatra e psicanalista, coordenou lares para crianças evacuadas durante a Segunda guerra mundial que foram separadas de suas famílias. Para Winnicott, a estabilidade ambiental e a continuidade dos cuidados oferecidos nos primeiros anos de vida de uma criança são fundamentais para a constituição do sentimento de segurança e confiança em si mesma, em relação ao outro e ao meio; para o desenvolvimento de autonomia e autoestima e da capacidade para tolerar frustrações e angústias, dentre outros aspectos.
Winnicott tem uma concepção do abrigo como um lugar de cuidado e não de abandono, capaz de promover experiências fundantes e reparatórias no psiquismo da criança. Quando a família, por algum motivo, não pode oferecer estas condições, outros adultos podem ocupar o lugar de atenção e cuidado e assim oferecer à criança condições de subjetivação.
No caso de destituição dos pais, haverá a suspensão das visitas dos mesmos à criança, que será considerada, a partir de então, disponível para a adoção. Este momento demanda da equipe do SAICA uma atenção aos efeitos emocionais da separação na criança, normalmente intensos e desestabilizadores. Peitter afirma que “o percurso que vai da separação da família até a adoção é um período de luto e reconstrução”.
E como podem os profissionais se oferecerem como apoio para estas crianças? Quais recursos são facilitadores de elaboração psíquica para elas?
De início é preciso reconhecer que este é um momento de grande vulnerabilidade para a criança. Parece óbvio, mas não é; lidar com o sofrimento destas crianças afeta profundamente o profissional que, no limite tolerável de contato com a dor da criança, lança mão de defesas como retraimento e distanciamento emocional, naturalizando as rupturas e quebras de continuidade na vida da criança. Além disso, existe uma concepção muito idealizada da adoção que desconsidera os fortes laços de afeto da criança com seus pais biológicos e o sofrimento e luto que se segue à destituição.
(No metrô Y., de 9 anos, após saber da destituição dos pais biológicos e suspensão das visitas, pergunta para a educadora que a acompanha numa consulta médica: “ tia, se eu visse aqui a minha mãe, você ia me deixar dar um abraço de despedida nela?”)
(T, de 6 anos diz aos irmãos que estão na mesma instituição: “não vou deixar ninguém separar a gente”, frente a perspectiva de adoção dele e dos irmãos por famílias diferentes.).
Para haver elaboração são necessárias palavras, conversas, disponibilidade da parte dos adultos; é importante oferecer oportunidades para a criança falar de seu passado, perceber qual a compreensão que ela tem do mesmo, deixá-la perguntar aquilo que não entende, oferecer informações sobre seu processo, permitir que ela acompanhe as decisões que definirão seu futuro. A suposição de que quanto menos se falar, melhor, pois evita sofrimento, não funciona neste caso.
A criança precisa construir uma narrativa sobre sua nova condição; este é um momento muito delicado, pois não estamos falando da verdade factual, mas da forma como a criança constrói uma narrativa própria, integrando os fatos vividos, as fantasias e a preservação afetiva dos pais biológicos.
(D., 10 anos: “meu pai punha a gente ajoelhado no milho, meu irmão apanhava muito; ele era nervoso, mas a educação das antigas era assim” – vemos o esforço para manter uma boa imagem do pai)
(T de 8 anos dizia: “minha mãe não vem me visitar porque não sabe o caminho” – tentativa de manter uma boa imagem da mãe)
Os pais fazem parte do eixo de sustentação narcísica da criança: sua autoestima e valor pessoal. Alguns profissionais têm, em relação às famílias, uma posição de culpabilização e desmerecimento delas; no entanto, os pais foram durante um tempo as referências da criança e os laços que ligam a criança a eles são parte de sua identidade.
No tempo vivido na instituição criam-se laços e referências, tanto com os adultos quanto entre as crianças. O apressamento das adoções desconsidera que a saída do Serviço de Acolhimento é mais uma ruptura na vida da criança e, portanto, deveria ser feito aos poucos, respeitando o tempo da criança se despedir daqueles com quem, até então, ela compartilhou sua vida.
A preparação dos pais candidatos à adoção é parte essencial de todo o processo e precisa incluir a sensibilização dos mesmos em relação aos laços construídos pela criança no Serviço de Acolhimento, no território (escola, esportes) e com os padrinhos e madrinhas afetivos. A adoção não é um nascimento, a criança é portadora de uma história.
“A criança não deve se separar bruscamente das crianças que conheceu por ter sido adotada. Essa separação de seu meio, de seus amiguinhos, é uma violação, um rapto, uma violência abominável. Deve-se proceder introduzindo mediações e etapas. (…) É preciso que a relação se mantenha por certo tempo; não convém separar-se de tudo e fazer como se estivesse acabado. A adoção não é um nascimento, nem o meio de Acolhimento- uma placenta. A placenta só existe uma vez, ao passo que a vida depois do nascimento é feita incessantemente de mediações na linguagem” (Françoise Dolto)
(M, de 11 anos vive um período de aproximação que termina na desistência da adoção pelos pais candidatos. Na primeira sessão após a desistência ele se senta e desenha uma banda de 10 amigos com os respectivos nomes e os lê para mim. São os amigos da escola. Após falar sobre a desistência dos candidatos e chorar um pouco me diz: o lado bom é que não vou ter que mudar de escola e posso continuar com meus amigos.”)
Embora entristecido pela desistência dos pais candidatos, ele sente que tem um lugar para onde voltar, como ele me disse neste dia: “eu tenho casa”.
A preparação para adoção é um processo delicado que exige intenso trabalho psíquico das crianças e adultos envolvidos. Por maiores que sejam as idealizações em torno da adoção, na realidade trata-se de um processo que se dá em várias etapas e a construção de novos laços de filiação envolve muitos desafios e intempéries.
Psicóloga pela PUC-SP, especialização em psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae, membro do Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae, membro do Núcleo Acesso- Estudos, Intervenções e Pesquisa sobre Adoção da Clínica Psicológica do mesmo instituto, atuando na equipe Abrigos.
Trabalho de formação com grupo de professores da Escola Miguilim de Educação Infantil desde 2009
Atendimento clínico de crianças, adolescentes e adultos em consultório particular desde 1986.
Artigo deDorisnei Rosa e Maíra F. Brauner
Artigo deRosa Maria Marini Mariotto