A associação entre autismo e uma escola de música parece, a princípio, improvável e até impensável porque, quase sempre, a relação que as pessoas estabelecem com a música é de entretenimento e lazer. É muito pouco comum que se perceba a música em suas dimensões mais profundas: como um dos elementos fundantes do humano ou como instrumento terapêutico (Trevarthen e Malloch, 2017; Freire et al, 2018). Serão esses os assuntos abordados neste texto.
A compreensão da música como um dos elementos mais importantes para o desenvolvimento das competências comunicativas e simbólicas do ser humano se tornou mais clara com o surgimento dos conceitos de “Parentalidade Intuitiva” (Papousek, 1996) e de “Musicalidade Comunicativa” (Malloch e Trevarthen, 2009).
A Parentalidade Intuitiva é um comportamento instintivo dos adultos que os habilita a proteger, alimentar, estimular e ensinar a seus bebês sua língua e sua cultura e é por isso que, desde seus primeiros contatos com o bebê, pais ou cuidadores atuam inconscientemente como protetores, nutridores e “professores” da língua e da cultura (Papousek, 1996). Esta atuação, imprescindível para o desenvolvimento geral da criança, ocorre de forma inconsciente, através de uma série de expressões faciais, falas, gestos e outras ações e intervenções de caráter puramente intuitivo, todos voltados para o estabelecimento de comunicação com o bebê.
Estimulados pela Parentalidade Intuitiva, os bebês, antes mesmo de completarem três meses, já são capazes de desenvolver protoconversas expressivas com seus pais ou cuidadores que, por sua vez, ajustam suas manifestações vocais, visuais, gestuais e táteis de forma a ir ao encontro das capacidades perceptuais e cognitivas do bebê (Malloch e Trevarthen, 2009). Os recém-nascidos parecem buscar ativamente essa forma de comunicação, essencial para seu desenvolvimento cognitivo, e nesse processo, o bebê começa o “treinamento” de seu “equipamento fisiológico” necessário à fala e ao canto, através da imitação obstinada dos gestos, sonoridades e da mímica facial dos adultos.
A principal ferramenta operacional da Parentalidade Intuitiva é a Musicalidade Comunicativa, outra habilidade inata que se ativa ao nascimento, caracterizada pela capacidade de combinar vocalizações com gestos (movimentos de cabeça, rosto e de membros), que proporcionam uma rica interação entre as mães/pais/cuidadores e seus bebês e é a base da comunicação verbal e gestual entre seres humanos, um dos principais canais simbólicos da vida adulta. Em decorrência da Musicalidade Comunicativa, pais e bebês compartilham um “alfabeto pré-linguístico” com características próprias da música, como timbres, alturas (contornos melódicos), intensidades (sons mais intensos e menos intensos) e padrões rítmico-temporais, peculiares desta forma de comunicação (Malloch e Trevarthen, 2009). A dimensão semântica da palavra não importa nesta forma de interação; o que importa é a carga afetiva incrustrada nas sonoridades e nos gestos trocados pela díade adulto/bebê. Neste engajamento, mães (adultos) e bebês oferecem e captam pistas acerca de seus estados mentais e afetivos, o que permite que as subjetividades dos membros da díade sejam compartilhadas (Nogueira; Moura, 2007).
Se este engajamento comunicativo é comprometido ao longo do desenvolvimento, como acontece com as crianças autistas (ou com Transtorno do Espectro do Autismo – TEA), a música tem se configurado como um instrumento importante para incentivar o afloramento e a potencialização da Musicalidade Comunicativa dessas crianças, o que tem permitido o resgate da capacidade de comunicação desta população. É justamente aí que entram as escolas de música…
A Educação Musical voltada para pessoas com algum tipo de deficiência é denominada Educação Musical Especial e tem como objetivo investigar e praticar o ensino e a aprendizagem da música para pessoas com deficiências. O “objetivo primário da educação musical especial é estimular e desenvolver habilidades musicais acessíveis ao aluno que possui limitações motoras e/ou mentais” (Oliveira et al, 2017). A educação musical pode promover efeitos tão benéficos quanto os da Musicoterapia, mas não deve ser considerada um processo terapêutico, “uma vez que seus objetivos primários são pedagógicos e não reabilitacionais” (Louro, 2006, p.66).
Por outro lado, a Musicoterapia consiste “em um processo sistemático de intervenção no qual o terapeuta ajuda o paciente a promover sua saúde utilizando experiências musicais e a relação terapêutica” (Bruscia, 2000 apud Sampaio et al, 2015, p. 148). No processo musicoterapêutico, são oferecidas ao paciente experiências musicais diversas por meio de atividades de audição, performance, composição e improvisação, determinadas pelas necessidades clínicas do paciente e por suas habilidades, gostos, histórico e ideias sobre a música (Sampaio et al, 2015, p. 149).
A Escola de Música da UFMG, instituição que forma educadores musicais e musicoterapeutas, sedia o Ambulatório de Musicoterapia que atende crianças autistas de todas as idades, e o Centro de Musicalização Integrado – CMI, que oferece aulas de musicalização e instrumento para crianças autistas entre dois e quinze anos de idade. Alunos de Graduação e Pós-graduação, orientados por professores da instituição, atendem essa população e os resultados têm sido animadores. Além disso, pesquisas têm sido conduzidas no sentido de aprofundar o conhecimento acerca das relações da música com o autismo, visando o aprimoramento de sua aplicabilidade pedagógica, pela Educação Musical, e da sua aplicabilidade terapêutica, pela Musicoterapia.
Nosso envolvimento direto com este trabalho na UFMG, tanto na orientação de pesquisas, quanto na supervisão de atividades práticas envolvendo crianças autistas tem mobilizado nossa atenção para resultados impressionantes, obtidos principalmente em relação à melhora da capacidade de comunicação social dessas crianças. E na busca por explicações bem fundamentadas que justificassem tais resultados, chegamos aos dois conceitos apresentados no início deste texto.
O efeito benéfico da música na pessoa autista está diretamente relacionado à Musicalidade Comunicativa, primórdio da comunicação humana, anterior à música e à palavra, que se manifesta desde o início da vida. A atividade musical tem o poder de instigar a musicalidade inata do autista, seja ele criança, adolescente, ou adulto, abrindo janelas de comunicação com essas pessoas, sem a necessidade da palavra. Mas para que isso aconteça, a musicalidade da pessoa autista tem que ser provocada pela Parentalidade intuitiva do educador ou do terapeuta, ou seja, é necessária a presença física desses profissionais para que o processo evolua. O educador/terapeuta engaja a música ou os estímulos sonoros que toca ou improvisa ao estado emocional da criança, a qual, aos poucos, passa a deixar a marca de seu humor, de sua personalidade e de sua subjetividade nas suas respostas a estes estímulos. Quando isso acontece, a Musicalidade Comunicativa daquele autista, que estava adormecida, é mobilizada, atiçada e potencializada pela atividade musical. Rompe-se a barreira de comunicação e integram-se as subjetividades que passam a ser compartilhadas. E é desta relação intersubjetiva que brota a palavra!
Assim, ao favorecer a criação deste modelo explicativo, a partir de pesquisas e da prática, a Escola de Música da UFMG coloca a música em outro patamar, agregando a esta manifestação artística dimensões até a pouco impensáveis, e que possibilitarão avanços em prol do desenvolvimento da pessoa autista.
Betânia Parizzi é Professora Associada da Escola de Música da UFMG. É Doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG; Mestre e especialista em Educação Musical e Bacharel em Piano também pela Escola de Música da UFMG. Atua na Graduação e na Pós-graduação onde desenvolve pesquisas sobre música e cognição com ênfase no desenvolvimento cognitivo-musical nos primeiros anos de vida e nas relações da música e o autismo.
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