Embora não me pareça feliz a escolha da palavra gênero, porque escamoteia as questões referentes à sexualidade: o desejo e o gozo – devemos reconhecer que ela se instalou em nossa língua e que hoje está no centro das discussões políticas, seja na voz de seus defensores ou na de seus detratores.
Dias atrás, por exemplo, diplomatas brasileiros receberam instruções do governo de Jair Bolsonaro para vetar nos textos e resoluções da ONU qualquer uso da palavra “gênero”, contradizendo os mesmos tratados internacionais que os governos brasileiros vêm assinando desde os anos 1990. (Chade, 2019). Absurdos como esse nos tornam imediatamente simpatizantes das questões de gênero já que não podemos compactuar com a tentativa de abolir um termo que carrega uma luta política de segregação e extermínio histórico.
Dito isso, também precisamos nos posicionar em relação às crianças ditas “transgênero” e, para isso, gostaria de comentar um breve relato publicado por Lori Duron (2013) contando o processo de transição de seu filho.
Arrumando seu armário, Lori encontrou uma antiga boneca Barbie, que fizera parte de suas brincadeiras de infância. Seu filho, C. J., então com dois anos e meio, viu a boneca e imediatamente ficou encantado; tomou-a para si e não a largou por meses: “Eu via minha criança absorta brincando com a Barbie, esse era o momento em que ele estava verdadeiramente feliz. Era quando o sorriso em seu rosto estava mais iluminado. Era quando tudo parecia certo no mundo” (Duron, 2013, p. 15).
Chamou a atenção da mãe a paixão crescente de C. J. por brinquedos considerados “de menina”, algo que não acontecia quando ele ganhava presentes “de menino”. Isso intrigou a mãe e preocupou o pai, que, inicialmente, estabeleceu regras sobre onde e como os brinquedos “de menina” seriam permitidos (primeiro, dentro de casa; depois, fora de casa, mas apenas em locais onde não houvesse conhecidos; por fim, em casas de parentes próximos). Mais tarde, os pais passaram a aceitar que ele brincasse publicamente com o que quisesse porque o fazia feliz.
C. J. começou a se interessar também por roupas femininas e pedia para vesti-las. Um dia, pegou o top laranja da mãe e não quis devolvê-lo. De outra feita, estava na casa da avó cozinhando, quando pôs seu avental preto e branco de bolinhas e se recusou a tirá-lo na hora de ir para casa. Usou-o para ir dormir e ficou com ele dentro da casa durante duas semanas seguidas. Combinava-o com os sapatos da mãe, de salto alto Mary Jane de couro vermelho, com um de seus braceletes prateados e tomou uma calculadora que usou como seu celular: dizia que era “mamãe indo trabalhar” (Duron, 2013, p. 28).
Tomando como disparador esse recorte do testemunho de Lori, gostaria de extrair três questões de nossa época que me parecem sintomáticas:
(1) o biologicismo, que fundamenta as questões do ser dissociando-as da linguagem,
(2) a posição dos pais que se situam como garantidores da felicidade do filho e
(3) a leitura literal que se faz das brincadeiras, que supõe eliminar a dimensão metafórica do jogo.
Num trabalho anterior, falei de minha surpresa ao ler que o determinismo do Outro (Stoppel de Gueller, 2018) – ou seja, as questões culturais que dão forma aos papéis masculinos e femininos – defendido por Judith Butler (2007, 2009) estivesse sendo lido pelos pais que defendem o desejo de transição de seus filhos com a lente do determinismo biológico. Sem essa suposição, não tem sentido pensar que uma criança de dois anos e meio já tem condição de exprimir sua desconformidade com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer. Então, vale a pena se perguntar: será que essa posição de cunho endogenista, que considerávamos superada, garante uma maior liberdade de escolha para as crianças?
A segunda questão diz respeito ao educar. É papel do adulto dizer o que é brincadeira e o que não é numa dada cultura, marcando as proibições que regem o lugar onde se vive e que variam com o tempo e com as línguas. É papel do adulto diferenciar para a criança o que é simbólico do que é imaginário.
É papel do adulto também assinalar para a criança o que é possível e o que é impossível, marcando a diferença entre o que é imaginário e o que é real. Cada cultura e cada época apresentam novos desafios à simbolização. Isso significa que o real não é uma categoria inatingível, mas que depende do que pode ser pensado em cada época e em cada cultura. Como já perguntaram meus filhos: “Mãe, como era viver sem celular?”
É da nossa época tomar a felicidade como um valor fundamental, tentar eliminar a dor, a tristeza e o sofrimento. Mas a clínica nos mostra que, paradoxalmente, isso produz novas formas de sofrimento, e que nunca houve tanta depressão como nos tempos atuais. Por isso precisamos questionar a educação que damos a nossos filhos: o esforço dos pais por agradá-los e deixá-los escolher e decidir, inclusive, o nome que recebem no nascimento, pode não ter um bom desfecho.
Escutar as crianças é fundamental e bem diferente de ter que obedecer a seus pedidos, já que isso implica confirmá-las num lugar de onipotência do qual não terão como, em algum momento, não cair e se espatifar. Dar um “lugar de fala” às crianças é diferente de fazer lugar para que elas possam falar.
A terceira questão sintomática – que decorre de escutar as crianças – é fazer uma interpretação literal de suas brincadeiras. Isso supõe que a linguagem seja transparente e que o jogo -como expressão de linguagem – possa ser lido como uma declaração do ser. Essa é uma questão que insiste quando lemos testemunhos de pais sobre o processo de transição de crianças. Destaca-se neles “não tanto a tomada de consciência das crianças de sua identidade de gênero; mas o processo de abertura à escuta, dos pais, da verdade que seus filhos já sabiam e afirmavam convictamente” (Ferreira Lima, 2018, p. 6, grifo nosso).
Se o brincar torna-se uma fala que revela uma verdade sobre o ser e que ainda garante a felicidade, perde-se a dimensão do faz de conta. O interesse e a curiosidade do menino por um objeto precioso da mãe, um brinquedo carregado de lembranças de sua infância, tornar-se desse modo um fetiche adquirindo consistência e fixidez. Se lemos o brincar ao pé da letra, perdemos sua dimensão metafórica, ou seja, a importância de que ali se opere uma substituição.
A infância, então, deixa de ser um tempo em que é fundamental brincar e explorar todas as possibilidades do faz-de-conta para tornar-se um tempo de revelação do verdadeiro ser. São os adultos que podem estabelecer as diferenças que separam imaginário, simbólico e real. Se superpomos esses três registros da experiência humana, eliminamos o tempo do ensaio, transformando a infância num tempo de “é para agora”, “é pra valer”, quer dizer, acabamos com o que caracteriza o ser de uma criança.
Psicanalista. Pós-doutora em Psicanálise pela UERJ. Professora e Coordenadora do departamento de Psicanálise com crianças no Instituto Sedes Sapientiae. Professora do curso de Teoria Psicanalítica na COGEAE-PUC-SP. Coautora de Atendimento psicanalítico com crianças e Atendimento psicanalítico de gêmeos. Zagodoni Ed. Psicanálise com crianças: perspectivas teórico-clínicas. Ed. Casa do psicólogo entre outras publicações.
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