Transtorno: codinome que se dá a um sujeito.
A consulta de uma criança com um profissional, devido às dificuldades do desenvolvimento, muitas vezes é um sintoma através do qual ela fala de seus problemas e/ou sofrimento. Se a abordagem carece de uma visão integradora, pode acontecer uma violência para a criança e os pais. Primeiro, se constrói uma “teia de aranha”, onde a criança fica presa e excluída da construção da sua subjetividade, porque o olhar só é dirigido ao transtorno. Segundo, se lhe coloca um pesado fardo de uma provável deficiência. Nessa corrente falaciosa, a diferença vira transtorno, o transtorno se torna uma deficiência, que por último configura uma doença. Esta aparece no “centro do palco” com os holofotes dirigidos na sua direção, e o sujeito fica num cone de sombra.
Os diagnósticos “oraculares” nem sempre se cumprem, mas o estigma pode chegar a ser mais avassalador que a doença. Terceiro, muitas vezes se usa com rapidez vertiginosa a “cura química”, para tentar recolocar a criança na redoma encantada da normalidade estatística. O termo normalidade depende da ideologia utilizada, e esta em geral, deforma a realidade pela utilização de lentes próprias que denigram a ciência. Para a ideologia, é normal aquilo que pertence a maioria, é anormal aquilo que pertence a minoria estatística, ou seja, sobrepõe o “DEVE SER” ao “É”. Isto se constitui em um perigoso erro, por esquecer que uma criança é uma criança, jamais igual às outras.
A procura incessante de causa orgânica nas disfunções nos empurra a um lugar da transmutação (mudança de paradigma) com omissões e/ou distorções dos fatos considerados. O cerne disto é a tendência em discriminar e erradicar o suposto perigo das crianças diferentes. Não podemos negar que existam crianças com verdadeiros déficits de todo tipo. Não podemos ser negacionistas. O que está em discussão é se uma das bordas desta multiplicidade do NORMAL ou ANORMAL pode ou não rotular uma verdadeira doença neurológica.
A pílula na criança, agindo no adulto
Na realidade, a medicação se utiliza para acalmar a angústia dos adultos (pais, professores, médicos), e concomitantemente a criança é colocada no lugar de “transtornada”. O rótulo dado, (pseudodiagnóstico) em ocasiões, se faz a partir de questionários e estatísticas de outros países e de maneira muito rígida. O sujeito novamente é esquecido e a doença iluminada. Não se dá relevância ao histórico familiar, às circunstâncias de vida, etc. O infeliz determinismo do futuro se coloca na contramão de um conceito real e verdadeiro, que é o que afirma que as crianças estão sujeitas a mudanças espontâneas, nas chamadas janelas do desenvolvimento. A notável Silvia Bleichmar, afirmou que nessas situações (até nas muito leves), sempre existe o temor dos pais de que os filhos acabem perdendo “o trem” que os conduziria ao êxito futuro (profissional e económico). A cada um de nós, profissionais que lidamos com esses problemas, cabe decidir se deixaremos que “o canto da sereia” nos cative e nos convença com a ideia do transtorno, ou se vamos ficar do lado da vida e das crianças.
Genética versus epigenética
Até poucos anos atrás dizer que a etiologia de um transtorno do desenvolvimento era da ordem da genética, significava colocar uma “pá de cal” nas esperanças dos pais. Detectar os chamados genes sentinelas, que seriam facilitadores possíveis para os aparecimentos de deficiências, era outra “martelada” no futuro. Sabemos que esses genes podem não se manifestar porque estudos sérios mostraram que a epigenética está por cima da genética. O exemplo é o autismo, que como diz M.C. Laznik, pode ser provocado por falhas na construção do laço primordial dos pais com o bebê, e que o trabalho precoce pode inibir o desenvolvimento da síndrome. Tomando o autismo desde o ponto de vista da psicanálise, podemos dizer que o aparecimento de uma síndrome autística é considerado como a tradução clínica da não instauração de um certo número de estruturas psíquicas que podem desencadear déficits e lesar o órgão que as suporta.
A luta contra a patologização das crianças.
Existe uma rotunda diferença entre pensar as dificuldades do desenvolvimento infantil como algo da ordem do analisável psicanaliticamente, e a perigosa ideia de que os sintomas devem ser rapidamente eliminados quimicamente custe o que custar. Reafirmo que os diagnósticos rápidos, preconcebidos, de tipo “fast food”, colocam uma pesada pedra nas costas das famílias para a vida toda. Quando se rotula o bebê como estranho ou diferente, não se pode esquecer, que essa afirmação, deve ser fundamentada em um diagnóstico muito bem documentado, e nunca um exercício de futurologia, porque esse bebê é alvo de um projeto de identificações, que engloba projetos e ilusões. O lado triste de toda essa confusão é que as crianças com determinadas dificuldades são institucional e socialmente “aparentemente” aceitas, ou melhor dito, toleradas em tanto e enquanto não obstaculizem o caminho liso e livre de pedras por onde caminha a suposta maioria “dos normais”. Existe um texto de Zygmunt Bauman: “Estrangeiros são perigosos. Será?”. Que serve de metáfora entre os imigrantes estrangeiros moradores em outro país e as crianças deficientes ou com transtornos que são estrangeiros em seu próprio país. O medo incondicional de se misturar com estranhos ou estrangeiros se denomina MIXOFOBIA.
Finalmente…O SAMBA DA BENÇÂO
A minha proposta é a de trabalhar na interdisciplina para estabelecer coordenadas que permitam construir um mundo no qual exista lugar para todos e para cada um, desde a diversidade, e que não aceitem a falsa homogeneização entre o normal e o anormal que leve a “medicalizar” inocentemente a vida humana, que é complexa e completa, não passível de estatísticas, ou da procura constante de objetividade. Devemos estimular a relação intersubjetiva que dá lugar à escuta e à palavra, o que por sua vez tem uma boa capacidade humanizadora.
Estava finalizando este texto. Quando apareceu abruptamente o decreto 10.502/2020 que tenta instituir a nova política nacional de educação especial. Sem entrar em detalhes ela é não inclusiva e muito pelo contrário, é segregacionista.
Mas a moeda tem dois lados, e no dia 5 de outubro foi publicado nos jornais a encíclica “TODOS IRMÂOS”, na qual o Papa Francisco critica as desigualdades e a discriminação entre os humanos. Ele usa uma frase do SAMBA da BENÇÂO de Vinicius de Moraes e Baden Powell, de 1967:
“A VIDA É A ARTE DO ENCONTRO, EMBORA HAJA TANTO DESENCONTRO PELA VIDA”
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Pediatra há 42 anos em São Paulo. Escritor: ganhador do prêmio Jabuti em 2003 em Educação e Psicologia pelo livro “O Direito à verdade” – cartas para uma criança, ed. Globo. Último lançamento: “Educar filhos, entre a renúncia e a urgência”, 2020 – Ágora. Formação em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientae (1978 a 1980).
Artigo deDorisnei Rosa e Maíra F. Brauner
Artigo deRosa Maria Marini Mariotto