A pandemia nos colocou diante de uma situação inusitada. De um dia para o outro tudo parou: as escolas fecharam, os escritórios vieram para casa, o comércio, os clubes, as academias cerraram suas portas, as praças e ruas públicas foram interditadas… e todos nós entramos em isolamento social.
Foi um susto, um momento repleto de medo: medo de contaminação, de aproximação, de morrer, de um bichinho invisível cuja melhor proteção é ficar em casa. Os pais foram postos à prova, a escola teve que ser repensada e remodelada e as compras indispensáveis só por delivery.
Como explicar para as crianças a necessidade de ficar em casa, lavar as mãos, usar máscaras, sem assustar ou criar fobias e discriminação? Como explicar as milhares de mortes diárias?
Uma tarefa desafiadora, especialmente, porque os cuidadores temerosos precisam transmitir segurança às crianças. Mas muitos livrinhos surgiram e foram compartilhados pelas redes sociais apresentando o “corona” e os cuidados necessários para “ele” ficar longe das crianças e entes queridos, figuras de referência para os pequenos.
A questão da morte é mais complexa, de tão abstrata e, ao mesmo tempo, concreta que é! Quando a criança se confronta com a morte e pergunta: mamãe você vai morrer? papai você vai morrer? Os pais respondem seguramente: não se preocupe, isso vai demorar muuuuito tempo! Nessa pandemia foi mais difícil sustentar essa certeza e, como as crianças, esperamos dos órgãos públicos uma resposta que nos assegure de que vão cuidar de nós, de nosso povo de forma ordenada! Penso que sem isso a criança, assim como todos nós, nega ou sucumbe na depressão ou na melancolia, pois elaborar toda essa dor e processar o luto com todos os rituais de morte é o que permitiria sairmos transformados do que está sendo chamado equivocadamente de novo normal que, mas na verdade é extremamente traumático.
Aos poucos os pais foram se reinventando. Os pais foram dividindo o tempo da função parental entre as tarefas domésticas, escolares e o trabalho. Todos se mostraram maleáveis para acolher as dificuldades, fruto do inesperado dessa pandemia.
Sempre vale a pena lembrar que para os bebês se desenvolverem de forma saudável necessitam de cuidadores que exerçam as funções materna e paterna. Alguém que cuide com prazer e disponibilidade – função materna, que vai permitir que o bebê tenha a construção da confiança e a crença do encontro de um objeto que a compreenda. Alguém que coloque limite de forma firme e sólida – que é a função paterna, o que vai favorecer o processo de separação, individuação e simbolização do bebê. E se for mais de um cuidador, é fundamental que haja uma sintonia muito grande entre eles, um vínculo cooperativo. E nessa construção de um vínculo cooperativo, esses cuidadores têm que ter valores éticos em relação à realidade e à verdade em que vivem[1].
E assim, os pais com mais tempo ao lado das crianças e com a imaginação, que não obedece a nenhum confinamento, ideias criativas surgiram. Como no filme de Benigni, A vida é bela, apesar da guerra biológica do lado de fora, o mundo de fantasia presente nas brincadeiras de faz de conta transformaram casas em castelos com piscinas e mares, praia com mergulhos no tapete da sala, circuitos para bike nos jardins, garras para escaladas nos muros, pingue-pongue na sala, jogos com perguntas e mímica, folhas grandes para desenhos, cabanas de todo tipo por todos os lugares, confecção de bolos, livros e mais livros lidos em família, festas de aniversário por zoom e tantas outras…
As iniciativas criativas são fruto da construção de uma relação de intimidade com o filho, desde sua chegada ao mundo. O desenvolvimento emocional pleno depende da possibilidade de vivermos essa intimidade das primeiras relações e de termos nossas necessidades afetivas atendidas e compreendidas pela disponibilidade emocional parental. Nesse momento caótico de pandemia potencializam-se estados confusionais e de incapacidade para pensar as várias experiências emocionais dos bebês/crianças. A capacidade de continência do cuidador será fundamental para promover a integração, o processo de simbolização e uma experiência de intimidade.
Além disso, todo mundo imaginário que os pais têm podido apresentar às suas crianças depende de seu mundo infantil que carrega dentro de si e as condições emocionais para tolerar os estados emocionais mais primitivos, não verbais e relacionados à dependência emocional.
Quando os pais não sabem bem o que funciona com o seu filho e não têm essa relação de intimidade fica mais difícil tourear a função parental sem turnos e em período integral. Então, as crianças, muitas vezes, são deixadas, nas telas, para os pais darem conta de outras tarefas. Isso ocorre, principalmente, com as pequenas que ainda não têm tantos recursos para inventarem suas brincadeiras. Vale à pena lembrar que o que as crianças mais precisam é poder brincar, cantar, desenhar, dramatizar, inventar… Apesar de ser difícil abandonar os aparatos tecnológicos, quanto mais possibilidade de um brincar criativo, mais sadio será o desenvolvimento emocional das crianças.
E a educação remota?
As famílias e a escola nunca estiveram tão próximas como nesse período. Os professores relatam que conheceram mais os pais e as crianças, com suas experiências inusitadas relatadas em imagens ou em momentos de trocas on-line. Os pais são educadores, mas não são mestres. Fazer o papel de mestre sem a didática, o setting da sala de aula, é desafiador. A valorização do professor e da escola na vida das crianças, nunca se fez tão presente. O professor com sua competência e capacidade para transmitir e para envolver as crianças e colegas, que também são parceiros do processo pedagógico, foi enaltecida. São qualidades únicas impossíveis de serem reproduzidas tão bem pelos pais.
Apesar de todas as dificuldades parentais, a escola tem sido parceira das famílias, com empatia e diálogos, oferecendo os ajustes e mediações necessárias respeitando a singularidade de cada criança. Nos deparamos com crianças deprimidas e decepcionadas quando apresentadas à escola/tela e com amigos bidimensionais, com poucas possibilidades de trocas intersubjetivas. Somos todos convocados para transformar as atividades bidimensionais em tridimensionais, com nossos gestos, prosódias, expressão corporal e afetiva!
E os pais como estão dando conta?
É um desafio para pais e mães: gerar amor, manter a esperança, conter as dificuldades, conseguir pensar e ser maleável[2],[3]. A pandemia vem deixando um sentimento de solidão nas famílias e nas crianças. Somos seres sociais e sentimos falta do contato humano. Sobrevivemos por estarmos internamente preenchidos por todas as lembranças e pessoas queridas que moram dentro de nós, o que não deixa a melancolia tomar conta. As crianças também estão tristes, deprimidas e às vezes irritadiças.
Para além de todas as saídas criativas, muitas vezes, dentro dessa situação de caos, os pais perdem a capacidade de pensar, explodem e se desorganizam. Nesse sentido eles são convocados a serem maleáveis para lidar com essa situação da função parental ter sido colocada a prova.
E o retorno à escola?
A capacidade empática das escolas está presente no acolhimento emocional aos professores para a criação de novas estratégias pedagógicas e aos pais na adaptação à escola remota e agora em seu retorno.
Diante do retorno há um misto de emoções: alegria e medo pelo encontro e o reencontro com a professora, os amigos, a rotina, agora com algum turno ente a casa e a escola. E com todos os protocolos para receber as crianças, há respeito pela escolha de cada família. Então, temos nos deparado com o cuidado com as crianças/famílias/avós e educadores X xenofobia/discriminação/medos, e não despertar nas crianças um aumento de mecanismos de controle e obsessão nas trocas intersubjetivas com educadores e colegas.
E nós psicanalistas, como tiramos proveito desse mal negócio?
Essa frase sabia de Bion, ecoou várias vezes em mim durante esta pandemia. Logo que chegaram as orientações dos órgãos públicos iniciei os atendimentos on-line com os pacientes de todas as idades, cheia de dúvidas, embora seja esse o nosso ofício: lidar com as incertezas e o desconhecido da vida.
Como seria sustentar o vínculo e a qualidade viva dos encontros presenciais com as crianças?
No novo consultório on-line, fui me adaptando com os recursos possíveis. Com fantoches grandes, panelinhas, comidinhas, jogos interativos como stop ou uno, fui convocando e trocando, conversando e processando todas as questões emocionais: as que vinham há tempos e as atuais repletas de incertezas. Para muitas crianças a pandemia só reatualizou traumas antigos e o reencontro com objetos parentais que, de tão sobrecarregados, continuaram com dificuldades em atender suas necessidades emocionais. Para outras, a presença constante dos pais, o convívio sem separações, foram vivências reparadoras de sofrimentos precoces, situação que jamais ocorreria, por tanto tempo, senão fosse a pandemia.
Os pais mais do que nunca têm sido parceiros ativos contribuindo para a manutenção do setting – lugar, material gráfico e lúdico. E, com eles presentes na sessão, tenho me oferecido como modelo ao dar sentidos às necessidades emocionais dos pequenos.
Muitos pais chegaram com medo de que seus bebês apresentassem indicadores de autismo, com comportamentos repetitivos ou problema de sono, falhas de intersubjetividade ou dificuldade de atender aos comandos. Ou ainda com relação ao controle esfincteriano: crianças que passaram a fazer xixi ou cocô no lugar errado ou pedindo para trocar a cueca ou a calcinha mil vezes por dia. Esse é maior poder dos pequenos, algo que depende só deles e sabem muito bem como mobilizar angústia nos cuidadores: utilizam-se de seu poder de “obrar” aonde querem.
Quando a criança fica nervosa e incontrolável, ela está reclamando que não está sendo atendida, que alguma coisa não vai bem, pedindo ajuda. Eu costumo chamar de reclamação o que comumente é chamado de birra. Nos encontros com os pais procuro compreender as necessidades emocionais que estão sendo comunicadas nessas reclamações. Do meu ponto de vista é fantástico como as crianças se fazem ser ouvidas, elas encontram formas de expressar seu sofrimento emocional e de nos mobilizar para escutar mais empaticamente suas necessidades!
Com os pais vou conversando sobre como a exposição excessiva às telas deixa a criança mais agitada e intolerante, pois ela fica em uma posição passiva, intoxicada e saturada de informações e impedida de elaborar suas angústias. Quando a criança brinca, ela processa os conflitos vividos durante o dia.
Além disso é cada vez mais comum, os pais irem ao Dr. Google buscar ajuda, e diagnosticar erroneamente as crianças. Mas, quando conversarmos, mesmo que on-line, observando a criança interagindo/brincando conosco (como esconde-esconde na tela com troca intersubjetiva), vemos suas competências e diagnósticos precipitados são desconstruídos. Assim, ao vivo e a cores, vou mostrando como a criança tem recursos e responde a uma atenção exclusiva, levantando conjecturas sobre o tempo de confinamento, que nós todos sabemos quais são. Aliás é a primeira vez que a vivência das famílias é igual a nossa, o que amplifica nossa empatia e compreensão. Então nesse exercício de acolher os pais e interagir com seus bebês, aproximamos pais e filhos e desfazemos diagnósticos equivocados que não oferecem a flexibilidade do nosso olhar psicanalítico.
Criando e construindo, trocando e confrontando nossas percepções, vamos embalando estas famílias com nossas palavras/canções (de ninar), escuta e capacidade empática, capacidade de continência e maleabilidade psíquica, possibilitando transformações e garantindo que a esperança sobreviva a esses tempos tão difíceis.
[1] Di Loreto, O. (1997). Da adoção (e dos erros do pensar) ou dos erros do pensar (e da adoção). Psicologia em Estudo, v. 2, n. 2, 14-6.
[2] Meltzer, D.; Harris, M. (1990). Familia y Comunidad. Buenos Aires: Spatia Editorial, p. 36.
[3] Roussillon, R. (1988). Le médium malléable. Revue Belge de Psychanalyse, 13, pp. 71-87.
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Psicanalista, Membro Efetivo, Analista Didata, Analista de Criança e Adolescente e Docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo ligada a IPA- International Psychoanalytical Association. Coordenadora da Clínica 0 a 3 e da Clínica transcultural da SBPSP. Membro da CIPPA e do Rieppi. Pós-doutora e Doutora em Psicologia Clínica e Mestre em Psicologia da Educação pela PUCSP. Membro do Departamento de Psicanálise com Crianças e Professora do curso Relação Pais-Bebê: da observação à intervenção do Instituto Sedes Sapientiae. Autora e organizadora de vários artigos e livros.
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