Vou começar por um momento que poderia chamar jocosamente de “mítico”, no período de minha supervisão em Paris com Françoise Dolto. Naquela época, tive a sorte de participar de seu trabalho analítico com crianças no hospital público Trousseau. Ela atendia numa sala onde havia umas dez cadeiras para analistas em formação e dizia aos analisantes e seus pais que podiam falar à vontade, que nós éramos “colegas” dela. Era um quadro de trabalho muito singular, unindo, na ousadia da Dolto, a clínica do povo à formação de analistas.
Recordo que, um dia, ela me pediu para ajudá-la a fazer passar um menino considerado psicótico num imenso tubo de pano como experiência de reviver o próprio nascimento. Lembro-me também dos pais se queixando que a filha deles não falava, era muda. Em dado momento, Dolto perguntou a eles: “vocês conversam em casa”? “Não”, responderam os pais. Então, disse ela, coloquem um radio em cima da mesa. Uns meses depois, a menina falava.
Isso, à título de “matar as saudades”. Agora, algo de minha supervisão. Ela insistia num ponto: os analistas, nas primeiras sessões, devem pedir aos analisantes os nomes dos pais e irmãos e de toda a família paterna e materna: avós, tios, tias. A repetição de certos nomes pode indicar identificações e merece especial atenção. Segui esta orientação, mas posteriormente a negligenciei. E ocorreu, mais adiante, que meus analisantes me fizeram redescobrir a importância, não somente dos nomes, mas de algo muito além. Eles e elas me ensinaram sobre a influência alienante de um supereu frequentemente em jogo, a identificação do filho ao irmão do pai, o tio inútil, vagabundo, ou alcoólatra, da identificação da filha à irmã da mãe, esta tia fútil, dita “não ter nada na cabeça”. Muitas vezes, surgia em mim a pergunta um pouco radical: os pais não têm filhos, mas mera repetição de irmãos rivais? Questão que deve ser tomada a sério. De fato, experiências de odiamores entre irmãos e de exacerbação narcísica nutrindo uma competição agressiva no desejo pela mãe marcam a infância. De modos diversos, esses odiamores entre irmãos que mais tarde se tornam pais atravessam posteriormente a relação deles com os filhos. O mito edípico é a referência fundamental da relação dos filhos com os pais. Mas não podemos negligenciar o mito secundário, mas muito importante da rivalidade assassina entre os primeiros irmãos da humanidade, Caím e Abel. Mito inspirador de conflitos mortíferos entre países, etnias e religiões. No nível de uma família, a dupla “amizade-rivalidade” entre irmãos tem as mais variadas versões. Quando se tornam pais, eles revivem com os filhos, em grande parte inconscientemente, a convivência fraterna da infância. E muitas vezes, surge a pergunta: como é que um pai pode não gostar de seu filho? Porque o identifica com um irmão rival considerado inferior. E durante o trabalho de uma análise, quando analisantes curtem o gozo real do sofrimento na identificação a parentes desvalorizados, um analista pode intervir com um corte do tipo: “você não precisa ser o irmão inútil de seu pai”, ou “para que ser a mera repetição de sua tia fútil”?
Driblar o supereu?
Devemos à segunda tópica freudiana o supereu, função crítica em relação ao eu: censura de sonhos, sentimentos de culpabilidade, delírios de observação, luto patológico correlativo do complexo de Édipo. Melanie Klein destaca a fase oral e o cruel sadismo infantil. Lacan sublinha a primazia do real no supereu, especificamente a respeito do objeto “a” chamado voz. E o olhar severo não deixa de rivalizar com a voz braba. Impressiona a força das expressões usadas por Lacan sobre o supereu: “imperativo que reclama obediência”, “intrusão do Outro com seu imperativo de gozo”, “lei insensata” (1), “aterroriza o sujeito” (2), “caráter invasor do olhar” (3).
O inconsciente falado por Freud é singular a cada sujeito e a experiência da análise é marcada por uma inventividade própria de cada analisante. A análise se confronta a outros discursos: Lacan sublinha o discurso do mestre político ou religioso e fala do discurso do capitalista e seu gozo imediato e geral para todos. Estes discursos servem de supereu feroz cultivado por governos autoritários muito numerosos em nosso planeta, agora tragicamente imitados em países chamados democráticos. É o supereu nazifascista do retrocesso cultural, do preconceito contra as minorias e do incentivo à tortura e à matança. Qual o efeito sobre famílias e como isso pode atingir um sujeito em sua singularidade?
Freud sublinha a instância do supereu a partir do declínio do complexo de Édipo, mas Lacan a antecipa radicalmente com o chamado “desejo do Outro”. Nas fantasias que acompanham a gravidez, na conversa entre os pais, circulam anseios positivos, medos, idealizações e expressões marcadas pelo supereu, remetendo facilmente ao temor que a criança seja a repetição de tal irmão “inútil”, de tal irmã “abestalhada”. Isso talvez seja o mais precioso ensino que devo a meus analisantes. Sempre recomendo, em supervisão, a lista dos nomes de todos os familiares. Recordo daquela jovem mulher inteligente, estudiosa, trabalhadeira. Ela era considerada pela mãe como fútil. Perguntei: quem é fútil na história de sua mãe? Ela respondeu: a irmã dela, minha tia. E há tantas estórias de pai revivendo sua rivalidade com tal irmão e anunciando ao filho que ele não vai dar certo na vida.
Lacan se refere, por exemplo, à devastação da filha pela mãe, um tema, assunto de muitos debates. Isso não nos livra de nos perguntarmos sobre a identificação alienante desta filha a uma tia materna que a mãe sempre considerou como inferior.
Nascer alienado para viver desalienado!
Numa família, a primeira criança a nascer é bem aceita, nem sempre, mas habitualmente, embora em certas regiões tenha que ser homem. Se esse bebê nasce “alienado” como fruto dos desejos dos pais e depende do desejo do grande Outro, esta alienação apela por uma separação. Uma das versões desta separação é que, desenvolvendo-se, o primogênito vai pouco a pouco aprender a pensar que ele é o mais belo presente para os pais, estes não precisando e não devendo mais ter outros filhos. Odiamor e rivalidade tomam facilmente conta da relação do primogênito com irmãos menores destinados, muitas vezes, a lutar para serem reconhecidos pelos pais. Com frequência, realmente e infelizmente, pode-se dizer: o primeiro é o primeiro, os outros são os outros, quando não são o resto. Quantos desses outros enfrentam o desafio do reconhecimento com muita garra e chegam a encaminhar a vida melhor do que o famoso primogênito. Mas tantos vacilam! Pois, na relação com os filhos, os pais revivem frequentemente a rivalidade anterior com os irmãos, via aberta à rejeição, mãe da depressão. “A” doença dos últimos cinquenta anos é reforçada pelo discurso capitalista investindo em produzir objetos de pouca duração. As geladeiras domésticas criadas em 1913 duravam a vida toda, mas hoje, os objetos são descartáveis. E a eles, tantas pessoas acabam se identificando, curtindo a depressão no seu “remédio” chamado abuso de fumo, de comida, de álcool, ou de droga! No início do texto Lituraterre, de 1971, Lacan se refere ao equívoco joyceano “a letter for a litter”, associa a letra-lixo à “poluição na cultura”: “aos desorientados destas afluências” “lembrei da premissa, a civilização é o esgoto” (4). É difícil negar e importante articular a influência do discurso capitalista sobre estados depressivos. Passa-se de objetos descartáveis a filhos, a irmãos, a povos rejeitados Em 10.02.71, Lacan denunciava a neocolonização da África pelos americanos a respeito do presidente da Costa do Marfim: “a extensão do capitalismo é o subdesenvolvimento”. “Nixon é de fato Houphouet-Boigny” (5). O que Lacan não diria de Trump hoje?
O peso do discurso capitalista toma formas variáveis de supereu. As modas sempre renovadas visam levar todos, numa massa, a querer, em determinado período, o mesmo objeto. Lembremos da moda em 2017 quando todo o mundo devia procurar o “Pokémon”. Lacan questiona radicalmente a submissão à imposição do mesmo objeto e insiste na importância da singularidade do fantasma, do objeto “a” de cada sujeito.
Um outro aspecto da rivalidade entre irmãos e de seus efeitos de supereu sobre filhos, é a rivalidade entre os pais. Minha família tem classe, diz uma mulher a seu marido. Mas você tem um irmão doido, responde o pai, e avise sua filha de não endoidar. Como se houvesse filhos somente do pai ou somente da mãe, encarregados de radicalizar e perpetuar rivalidades. Fulana teria classe e fulano doidice? Sombrias alienações nessas identificações.
A psicanálise pode permitir o atravessamento dessas alienações e abrir o caminho para a vida criativa de um sujeito em sua singularidade.
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Doutor pela Universidade Católica de Paris. Foi membro da École Freudienne de Paris. É psicanalista da Intersecção Psicanalítica do Brasil (IPB), associação membro do Movimento Convergência.
Artigo deDorisnei Rosa e Maíra F. Brauner
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