Pensar nesse momento tão especial e de suma importância chamado infância, nos faz deparar com crianças que desde o início da vida seguem caminhando em suas descobertas, construções e aprendizagens. Para tanto usam diferentes linguagens nos indicando diversas aquisições, curiosidades, desejos e tentam assim se fazer entender e atender. Mas e quando essa criança não olha, não brinca, não interage, não fala, nem se interessa pelos brinquedos? E se a criança apresenta um ritmo diferente do que é o esperado, não se relacionando com o outro, e está sem intenção comunicativa?
Na clínica da infância temos nos debruçado sobre tais questões pois sobretudo, entendemos que a criança contemporânea recebe uma exigência social onde tudo remete ao imediatismo e à competência, como temos acompanhado nos últimos anos. As crianças que falam pouco ou que não falam ainda, que não constroem narrativas, ou que apenas repetem a fala do outro, trazem muitas reflexões para a clínica fonoaudiológica, pois não necessariamente apresentam um quadro patológico.
O fonoaudiólogo que se dedica ao atendimento de crianças pequenas é convocado a responder sobre um sujeito que está em constituição e que atravessa um tempo de muitas aquisições no caminho da construção da linguagem e, portanto, sofre vicissitudes durante esse percurso. E cabe a esse início de vida que nos perguntemos: o que é preciso mesmo para que uma criança fale?
Para responder a essa indagação é precioso considerar que a criança que ali se manifesta é sujeito e, assim sendo, convoca e é convocada pelo outro, com poucas palavras ou pelo silêncio, ou seja, tem o que dizer de uma forma ou de outra. Mas para que isso ocorra é necessário que alguém a escute. E é nessa negociação que acontece algo bem importante para que uma criança fale: ser reconhecida no lugar de falante.
Como reconhecer o lugar de falante de uma criança, se seu “interlocutor” muitas vezes é um tablet ou um celular?
Na contramão do que é preciso na tenra infância, temos nos deparado com cenas cotidianas de crianças muito pequenas que poderiam estar explorando brincadeiras corporais, inclusive com a boca, se mantendo em silêncio na companhia das telas.
Se esperamos que a criança se represente pela própria fala, ou seja, que não precise de um outro para falar por ela e sim com ela, há aí uma grande chance de um sujeito advir. É nessa oportunidade que surge a possibilidade de uma criança vir a ser falante, estabelecendo uma relação desde a matriz dialógica onde ela pode encontrar seu lugar, em interação. É fundamental que a criança tenha um interlocutor, alguém que a posicione na língua, a provoque, aposte nela e a sustente nas pequenas construções linguísticas como é o esperado em crianças por volta dos 2 anos de idade.
A criança em seu tempo e a exigência nas relações contemporâneas – um descompasso
No trabalho com crianças na clínica fonoaudiológica acompanhamos também as questões dos pais que muito frequentemente perguntam nas conversas com os terapeutas qual o melhor caminho para seu filho. À procura de melhores escolas, cursos e cuidados, os pais acabam declarando algo que é mais que zelo pelo filho, passa a ser exigência. Com receio que o filho não possa acompanhar o percurso imaginado por eles, antecipam então os conteúdos. Estudar numa escola que ofereça outras línguas, num mundo que vem se mostrando globalizado, pode somar pontos para o futuro, sendo essa a hipótese de muitos pais, atualmente.
Recebemos na clínica fonoaudiológica, nos últimos anos, muitas crianças pequenas que ainda não falam quando já deveriam. Sem diagnóstico de origem orgânica e aparentemente saudáveis, tais crianças brincam pouco, ocupando muitas vezes o lugar de um bebê. Esse movimento singular da criança faz com que os pais procurem informações sobre quais patologias seu filho pode estar apresentando. Trata-se de um atraso sem comprovação, não há alteração no corpo, nas imagens dos exames, como vemos em casos de perdas auditivas, malformações cranianas, síndromes , entre outros problemas, mas que provocam descompasso quando crianças em torno dos 2 anos já deveriam estar falando algumas palavras ou fazendo pequenas frases.
A discussão sugere refletir sobre o que é da subjetividade da criança e o que é da exigência do mundo contemporâneo e sua interferência, como temos acompanhado frequentemente na clínica da infância, nos casos de diagnósticos antecipados ou sugeridos em torno do Transtorno do Espectro Autista (TEA), por exemplo, em crianças pequenas que se encontram em plena aquisição de linguagem.
Para entender o que acontece com a criança nesse momento tão inicial de constituição, é necessário, muitas vezes, articulações com outras áreas que possam ajudar na reflexão sobre o cruzamento do orgânico, do psíquico e do social para melhor entender os casos clínicos e se há algum desses fatores preponderantes ou que justifiquem as dificuldades manifestadas pela criança.
A linguagem é da ordem do imprevisível!!
Outro dia escutei uma senhora comentando sobre a esperteza de sua neta que havia, aos 4 anos, conseguido destravar seu celular digitando a senha . A avó surpreendida pelo feito pergunta como ela sabia a senha se nunca havia lhe contado. A criança respondeu: “eu vi você fazendo assim, assim, assim no seu celular“ (descrevendo a digitação dos números).
Esta cena pode nos mostrar muitas coisas: o quanto a criança é observadora e aproveita dos detalhes para participar do mundo dos maiores, o pensamento rápido da criança que faz uso da memória visual para alcançar o que quer, a riqueza de explicação em detalhes de como conseguiu obter a tão secreta senha … mas com certeza, é uma criança que está envolvida e considerada nas relações, participando de tudo, interagindo e fazendo uso da linguagem.
Esse é um dos inúmeros exemplos que podemos relatar mostrando o quanto a tecnologia está presente na vida das crianças, já que a diversidade dos eletrônicos tem substituído os brinquedos, isso é fato. Porém nem todas as crianças fazem bom uso dos aparelhos, pois ainda em tenra idade, estão sendo abduzidas por movimentos mecânicos, onde não há interação, onde não são escutadas e não tem pra quem falar. Portando as crianças que recebemos nos últimos tempos na clínica da infância têm em comum dois pontos: atraso de linguagem e uso dos eletrônicos.
Em tempos de constituição, a linguagem tem papel fundante, posicionando a criança no lugar de sujeito com suas particularidades. O que esperamos de uma criança nesse tempo? Que seja curiosa, que invente, que o brincar seja seu trabalho, que faça devaneios usando sua linguagem para assim alcançar novas aquisições e descobertas.
O relacionamento humano é insubstituível. Máquinas falam como máquinas e não como gente. Imitam, repetem, porém não interagem, ou seja, não esperam nada da criança. São alimentadas por toques e comandos que se repetem.
Para construir linguagem é preciso interagir, apostar no mundo do imprevisível!! Delicada e amorosa relação estabelecida com uma criança onde as máquinas não têm lugar.
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Fonoaudióloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Distúrbios da Comunicação pela PUC-SP e Doutora em Fonoaudiologia pela PUC-SP. Integra a equipe da Clínica Interdisciplinar Prof. Dr. Mauro Spinelli. Professora convidada do curso: “A criança e a palavra: a linguagem na perspectiva interdisciplinar.” (Instituto Sedes Sapientiae-SP) ;org. do livro: Linguagem e saúde mental na infância: uma experiência de parcerias (CRV, 2010), autora do livro: Interdisciplinaridade no processo de diagnóstico e conduta em crianças com Distúrbios de Linguagem (CRV, 2017); org. do livro : A criança e a palavra – a linguagem e suas articulações ( CRV, 2018).
Artigo deDorisnei Rosa e Maíra F. Brauner
Artigo deRosa Maria Marini Mariotto