A experiência da quarentena tem levantado uma série de interrogações acerca dos rumos dos cuidados com a estruturação psíquica e aprendizagem de bebês, crianças e adolescentes para pais, educadores e terapeutas. Embora tenhamos vários canais virtuais, são poucos se comparados aos que temos quando a vida está normal e estamos afastados de experiências que só em presença se pode ter. O contato, o olhar, a conversa ainda são necessidades fundamentais para nossa vida.
Para os pais se produz uma sobrecarga de cuidados das crianças, já que os mesmos não têm como serem compartilhados com a família, escola ou funcionários.
Para os educadores comparece a dura tarefa de sustentar o processo educacional através da virtualidade, buscando o que é possível fazer, mas também os limites implicados nesse meio virtual.
Para os clínicos, tornou-se necessário sustentar e repensar o contexto das intervenções com seus pacientes em uma encruzilhada nas quais conflitos psíquicos preexistentes, que exigiam tratamento, se cruzaram com os impasses que a humanidade encontra nesse momento histórico diante do risco produzido pelo vírus Sars-Cov 2.
Todos estão atingidos por essa pandemia, mas não igualmente. Se um mesmo vírus incide de um modo diferente em cada organismo (sendo preciso considerar fatores de riscos que produzem comorbidades, tais como problemas respiratórios, cardíacos, diabetes, entre outros), não são nada indiferentes as condições sociais de cada um dos atingidos, já que a vulnerabilidade faz com que não se conte com recursos semelhantes para atravessar o risco de contágio, bem como com recursos para tratar a doença (desde ter água para lavar as mãos, casas que permitam isolamento, até acesso a leitos com respiradores). O vírus explora as fraquezas biológicas das pessoas, também oriundas de causas sociais, como desigualdades de acesso à saúde, saneamento básico, moradia, precariedade de condições de trabalho, ou seja, os mais vulneráveis são sempre os mais atingidos. Desde o aspecto psíquico, tampouco são indiferentes os conflitos pré-existentes, nos quais as “cavilhas” dessa pandemia se prestam a encaixe, assumindo significações e provocando consequências psíquicas diversas, dependendo da estrutura subjetiva que esteja em jogo, bem como do momento de estruturação no qual alguém se encontre.
Ao longo da estruturação há certos momentos lógicos em que se atravessam problemáticas cruciais: no tempo de ser bebê (dos zero aos três anos), pequena criança (dos 3 aos 6 anos), criança ou adolescente se conta com recursos psíquicos diferentes para poder responder às contingências que se apresentam na vida, principalmente àquelas contingências históricas que atingem todo o conjunto da humanidade.
Estamos todos vivendo um acontecimento que impõe uma descontinuidade nas pequenas e nas grandes questões da vida, desde a organização do cotidiano, passando pela sustentação dos projetos de vida de cada um, chegando a se interrogar os modos de restabelecimento de laços coletivos como humanidade a partir de agora. Por isso se discutem os efeitos da retirada humana dos espaços e seus efeitos para a ecologia, a necessidade de distribuição de uma renda mínima universal, o reinvestimento em um estado de bem-estar social que zele pela saúde e educação de todos, entre tantas questões que exigirão refazer o pacto civilizatório.
Entretanto, esse pode ser um tempo que tem uma proposta interessante: pode ser um prato cheio para repensarmos cada um o seu modo de vida, o modo como se vive em família, como cuidamos de nós mesmos e dos nossos laços fraternos, de nossa casa, o quanto somos mesmo solidários e percebemos com posição crítica as injustiças, ou seja, esta é uma oportunidade de fazermos uma reflexão ética. Mas também pode ser um momento para se fechar cada um mais em seu próprio mundo, ou ainda, achar que está tudo bem.
Diante de tamanha encruzilhada, as crianças, dependendo da idade ou problemáticas psíquicas que tenham, fazem um maior ou um menor registro da extensão dessas questões. Mas é certo que, para todas elas, isso impacta diretamente em seu dia-a-dia: na suspensão da ida à escola, que para muitos representa o lugar exclusivo de convívio com outras crianças; na mediação de atividades de aprendizagem junto aos professores na escola; na reclusão dentro de casa; e no isolamento em relação a outras pessoas implicadas em seus cuidados, sejam babás ou família extensa, passando a ser cuidadas exclusivamente pelos adultos que moram com elas – às vezes por apenas um adulto.
Além dos aspectos mais pragmáticos do dia-a-dia, tais impactos revelam para as crianças que os adultos estão confrontados com suas próprias incertezas e não saberes, seja em relação ao cuidado da casa (frequentemente relegado a terceiros nas classes média e alta deste país), a educar (atividade fortemente delegada à escola), ao cuidar no cotidiano (tantas vezes terceirizado a babás ou compartilhado com familiares). Os adultos também estão surpreendidos por algo que não calcularam, perplexos e atônitos. Depois de imaginar terem domesticado o espanto que as crianças costumam ter diante do mundo, estão novamente habitados por ele.
O mundo é muito surpreendente para as crianças, e, diante das menores minúcias, como a sombra, a folha, a faísca ou a formiga, as crianças trilham um caminho que vai do espanto à representação, que liga um acontecimento a outro, estabilizando as suas significações. As crianças têm no brincar um importantíssimo recurso psíquico: brincando as crianças elaboram o que as atinge. É por isso que as crianças brincam de covid-19. Esses dias, durante uma sessão virtual, um pequeno menino de 5 anos encaixava e soltava da borda de um copinho uma bolinha verde toda pontilhada de espinhos e pequenas ventosas na ponta, semelhante à imagem do coronavírus.
As crianças desenham o coronavírus, brincam de lutar fisicamente com ele como com um personagem de quadrinhos, representando o vírus (morto) com os olhos em cruz. Encenam com bonecos mundos imaginários em que todos voltam a habitar as praças em uma grande festa junina, ou até mesmo mundos em que há muitas crianças cuidadas por poucos adultos, que passaram a ser os novos pais de numerosas famílias, porque muitas das pessoas mais velhas morreram.
Um menino um pouco maior, de 9 anos, dizia em sessão virtual que estava com muito, muito medo do coronavírus. Avançando na conversa, pôde me dizer de seu medo da morte, mas principalmente medo de não saber o que acontece depois da morte: se seria “outra fase” (como a de um videogame) ou simplesmente “como apagar a luz e acabou”.
Assim, do coronavírus, passa a elaborar uma das grandes questões da humanidade, que, como qualquer grande questão, recebe respostas culturais diversas, tocando a borda do saber e não-saber. Além da importância de que fale sobre isso com seus familiares, fazendo suas investigações e chegando às suas próprias conclusões, terapeuticamente lhe aponto que temer a morte é amar viver, e que então temos que fazer a vida valer a pena, cuidando dela a cada dia. Viver só pensando na morte e temendo a morte é já estar mortificado. Passou então a falar de viagens, ou seja, do que queria da vida e de planos para depois da quarentena.
É preciso, portanto, que se abra lugar à conversa e ao brincar diante do que acomete às crianças justamente para não adoecer.
Enquanto isso, vivemos uma discrepância abissal entre as escolas públicas e particulares. Enquanto nas primeiras se produz uma suspensão das atividades, nas segundas se produz uma polêmica entre pais e educadores. Há pais que exigem mais tarefas escolares, preocupados com que as crianças não percam tempo em sua escolarização. Outros clamam pela suspensão das mesmas, pelação de tarefas que implica terem que se ocupar de acompanhar as atividades escolares em meio a seus próprios compromissos de trabalho.
Fica a descoberto que aprender não é simplesmente um encontro de um estudante com um conteúdo. As crianças não têm como fazer das atividades escolares uma espécie de home office, mantendo-se ocupadas diante de um computador enquanto os pais fazem o mesmo. O modo como um objeto de aprendizagem é apresentado e mediado faz toda a diferença para apreender, seja pelo encanto que um professor tem em relação a esse objeto, transmitindo-o aos alunos, seja pelo compartilhamento que se produz com os colegas da mesma idade na troca de ideias e nas formulações coletivas de hipóteses por um grupo, que são componentes centrais para apreender.
Nesse momento é preciso lembrar que educar, muito mais do que tentar ensinar conteúdos apostilados sem ser professor, é transmitir o que importa na vida. Boa pergunta aliás para fazermos diante de tantas crianças que vinham de uma vivência de agendas cheias de atividades, mas que tantas vezes carecem de ideais desde os quais construir suas narrativas e brincadeiras, ficando dependentes de que outros lhes proponham atividades pautadas.
Por isso, mais do que entreter as crianças durante a quarentena, achando que precisaríamos rechear as suas vidas de um sem fim de atividades prazenteiramente edificantes, ou quebrar a cabeça com o homeschooling como se fosse possível prosseguir no mesmo ritmo, ou ainda deixá-las sós com eletrônicos enquanto os adultos fazem todas as tarefas do seus trabalhos e as da casa, é preciso estar junto do modo em que é possível diante do que nos coube viver, mas disponíveis para um compartilhamento lúdico do cotidiano. Cozinhar junto, arrumar a cama junto, pendurar roupa junto, conversando sério sobre as aflições que temos e brincando também, pois isso pode dar lugar a muito mais aprendizagens que qualquer atividade pré-programada. É preciso nesses tempos conviver muito, ou seja, fazer a vida em comum acontecer, sustentando o prazer de viver e também os limites e as angústias que atingem a todos nesse momento.
Educação é muito mais que ensinar conteúdos e desenvolver habilidades e competências, educação é formação humana no sentido mais amplo, não só de capacidades, mas de desenvolvimento de sensibilidade e humanidade, uma formação ética e estética.Nesse contexto, o encontro entre família e escola tantas vezes tem carecido do diálogo necessário para cuidar conjuntamente da formação de uma criança, que é algo muito maior do que reduzir essa relação a uma prestação de serviços na lógica do consumidor.
A virtualidade é um recurso possível para alguns durante a quarentena (ainda que haja uma grande maioria de pacientes e alunos do ensino e da educação pública fora do acesso digital). Para aqueles com acesso, tem se procurado sustentar encontros de aprendizagem, bem como os atendimentos clínicos. Entendendo que, para atravessar um momento crucial, é preciso não recuar dos cuidados do modo em que os mesmos sejam possíveis. O que tampouco implica avançar como se houvesse uma simples continuidade entre os encontros presenciais e os virtuais.
Por meio das telas o olhar se achata de modo bidimensional. Além disso, quando olhamos nos olhos de nosso interlocutor virtual, ele não encontra o nosso olhar e, se olhamos para o “olho de vidro” do pequeno orifício da câmera, para que nosso interlocutor tenha a ilusão de que estamos olhando em seus olhos, perdemos de vista as reações faciais que nele provoca o nosso dizer.
Por sua vez, em tais dispositivos, a voz é mecânica, fazendo com que se percam nuances da entoação e articulação, bem como todas as condições gestuais, sendo todos esses aspectos importantíssimos para o contexto de enunciação, ou seja, para o entorno no qual se decide a significação do que dizemos.
Nos contextos virtuais, os silêncios tendem a ser compreendidos como falhas técnicas, sendo preciso a todo momento preenchê-los ou confirmar que se escutou, que se viu ou se entendeu. Isso torna bastante difíceis os diálogos, já que o silêncio arma o turno para cada um, bem como cria um espaço de elaboração antes de se tomar a palavra, ou depois de escutar o dito.
Por isso os encontros virtuais não são equivalentes aos presenciais. Estamos virtualmente ao mesmo tempo, mas em espaços diferentes, geralmente enquadrados como cabeças flutuantes. Sem corpo. Será que sem corpo presente podemos apreender, transmitir, nos relacionar?
Certamente faz aí bastante diferença a idade que se tenha, pois sabemos que, quanto maior for a possibilidade de representação de alguém pela palavra, mais possível é sustentar uma relação com outro, mesmo em ausência real do seu corpo, tal como muito antes da internet o revelaram as relações epistolares. Mas, para um bebê ou pequena criança, a situação aí não é simétrica à de um adolescente ou adulto. Tampouco o é em função das dificuldades psíquicas que estejam em jogo para cada um. Daí que exija um grande cuidado clínico considerar como proceder em cada caso, restabelecendo o marco e enquadre do tratamento para este contexto virtual durante a quarentena. Não dá na mesma fazer sessões ao telefone (priorizando a voz) e por vídeo (nos casos em que o olhar é imprescindível), e inclusive tampouco é equivalente a duração da sessão ou a frequência de atendimento em cada caso durante a quarentena.
Quando tratamos de pequenas crianças para as quais o endereçamento aos outros não está estabelecido, fazer com que se sintam convocadas pelo olhar e pela voz exige um grande trabalho do clínico, mesmo em presença. Pela via virtual colocam-se obstáculos a mais na tentativa de produzir encontros possíveis com a criança. Além da bidimensionalidade da visão, do desencontro do olhar, da deformação da voz, da ausência de um espaço em comum para o contexto da enunciação, da falta de olfato (que no caso de bebê exige que os pais possam pôr em palavras se o barulho escutado correspondeu ou não ao fato do bebê ter feito cocô, por exemplo) – todos aspectos técnicos desse modo de comunicação –, é preciso também levar em conta como os gadgets estão impregnados por uma certa lógica de encontro performático que se opõe à lógica de uma sessão. Assim, é frequente que, na intervenção com bebês e crianças pequenas, os pais queiram que a criança nos mostre algo, nos diga oi, se endereça a nós assim que a chamada completa, sendo preciso retomar um marco que faz com que essa videochamada se coloque desde a condição de nossa disponibilidade para a criança, às vezes partindo de um silêncio, olhando o que ela olha ou falando-lhe do que ela faz, sem que o seu fazer seja inicialmente dirigido a nós. Outras evocando uma música do brinquedo que ela tem na mão ou um gesto ou brincar compartilhado de uma outra sessão… Trata-se de sustentar o tempo e o espaço para o desenrolar de um fazer imprevisível, em que a criança possa entrar e sair do enquadramento, se dispondo ou não a esse encontro junto a seus pais. Lembro de um menininho de três anos que, quando a mãe pega o celular, diz “música, música”, chorosamente, frustrando- se pelo fato de me encontrar ali, em lugar de poder assistir o aplicativo. No entanto, a sessão se desdobra quando lhe canto uma música da sessão e, na sequência, ele me canta uma nova, saindo da condição de passividade em que se fica diante de aplicativos para uma de atividade, em uma estrutura dialógica, com turnos e endereçamento a outro, mesmo que através do celular.
Em outro caso, no início da filmagem, um bebê de dois anos está olhando para um pedacinho de papel. A mãe pede que ele me olhe pela câmera do celular, mas ele não responde a essa demanda. Pergunto o que será que tem nesse papel, ele balbucia e a mãe traduz “abelha”. Faço então o zunido da abelha e imito seu vôo com minha mão. Ele então me olha, justamente quando dou voz ao objeto que captura o seu olhar. Depois imito a picada de uma abelha com o dedo indicador sobre o meu braço fazendo o som “pim”. Na segunda vez a mãe faz o gesto sobre o braço do filho, transformando em toque o meu gesto e som. Todos rimos juntos, pois ali havia se realizado um encontro possível.
Trata-se de quebrar uma lógica, a das intoxicações eletrônicas, que é a que predomina na utilização desses gadgets, sustentando a possibilidade do comparecimento do sujeito em encontros pelo meio virtual.
Depois de um período ao longo do qual se tornou crescente a exposição de crianças a telas de cristal líquido, experimentamos os limites da virtualidade, diante do qual talvez se imponha a necessária retomada do termo educação, menos como ensino de um conteúdo a ser passado e mais na direção da transmissão simbólica, ou seja, de compartilhar experiências vividas por adultos diretamente implicados nos cuidados das crianças, contando histórias, as familiares e as da humanidade, as da ficção e as da realidade, já que ambas comportam verdades, cultivando o estofo simbólico desde o qual se ganha coragem para atravessar os duros momentos que comparecem ao longo do viver.
Quando compartilhamos os saberes engendrados pela elaboração do viver, o que um transmite pode contribuir para a vida de outro, a fim de que não passe pelas mesmas dificuldades e não repita os mesmos erros. Por isso, fazer o simbólico circular é o modo de produzir a elaboração de um fato histórico e a transmissão de um saber, por contos orais ou escritos, filmes, peças, esculturas, pinturas, quadrinhos, grafites, piadas, comidas familiares ou cantigas infantis.
Estar com as crianças compartilhando e de modo disponível é decisivo nesse momento. Aliás, é o que a humanidade fez nos momentos mais críticos. Recentemente evocava em um encontro com colegas para discutirmos “a virtualidade e os encontros possíveis na quarentena” o livro “No he visto mariposas por aqui”, que traz desenhos e poemas das crianças do campo de concentração de Terezin. Ali, mesmo às portas da morte, os adultos contavam para as crianças o que sabiam da vida e de seus objetos de interesse. Físicos davam aula de física, artistas de suas artes, e assim permitiam que as crianças não só aprendessem conteúdos, mas principalmente produzissem recursos psíquicos e epistêmicos que as fortaleciam simbolicamente. C e r t a m e n t e trata-se de uma situação incomparável com a que estamos vivendo. No entanto ela revela a importância da transmissão simbólica, pois recordar e passar adiante o saber de uma geração para outra é imprescindível para elaborar e não repetir, seja na vida de cada um, seja na história de toda uma sociedade.
As crianças não devem ser expostas cruelmente à realidade de forma brutal. É preciso poupá-las para que possam sonhar brincando (e essa é a infância roubada de tantas crianças do mundo expostas à miséria, à doença e à violência da privação dos direitos humanos ). Mas tampouco se deve negar suas percepções sobre o mundo e as respostas às suas questões, porque se viverem dissociadas da realidade, extirpadas da interrogação acerca de qualquer conflito ético, em um continuum de satisfações capaz de causar torpor às suas percepções, se tornarão “pobres meninos ricos”, condenados à estúpida assepsia da “garantia do final feliz”, não só frágeis psiquicamente, mas com muito pouco a contribuir com um projeto maior de civilidade, já que centradas em um hedonismo narcisista.
Não devemos pintar para as crianças um falso cenário festivo na ilusão de que poderíamos tapar o sol com a peneira. As crianças não se enganam, elas sabem buscar nos pequenos detalhes as incongruências que os adultos buscam ocultar. Essa é a diferença entre o que os adultos fizeram no campo de concentração de Terezin – no qual falavam com as crianças de história, arte, astronomia, desenhavam e inventavam poesias – e o personagem do filme “A vida é bela”, no qual o pai procura disfarçar para o seu filho as atrocidades do campo de concentração, como se tudo fosse um grande jogo. ( Artigo: As Crianças e o Paraíso, 1999, Correio da APPOA)
Conversar para valer sobre as questões da vida não está em oposição com poder sonhar, brincar, desenhar ou fazer um chiste. Ou alguém acredita que as crianças não percebem a perplexidade estampada no rosto dos adultos quando o mundo também se torna espantoso para eles?
Os recursos da infância não são os mesmos da adolescência, mas tampouco o são as suas urgências. A passagem adolescente, da condição de criança para a entrada na vida adulta, vem acompanhada por uma sede de experimentar vivências que permitam produzir um saber que se apoie em experiências próprias.
Um adolescente me dizia que havia feito as contas e que provavelmente só poderá voltar a beijar em 2021. Outra falava que estava fazendo a “rotina da Rapunzel”, justamente a história de contos de fada em que a protagonista está presa em uma torre. Outro contava da dor de perder o convívio com seus colegas no último ano de escola, um momento da vida em que cada dia é tão único e transformador. Outro ainda falava das incertezas do futuro,entre elas, da data do Enem. Outro, ainda, devido à dificuldade de privacidade em casa para ter suas sessões online, busca o sótão numa bela metáfora dessa experiência de buscar o privado em si que é se analisar.
Certamente se apresenta uma perda imediata em ficar recluso em um momento da vida em que é preciso experimentar encontros mundo afora que permitam o exercício amoroso, social e sexual na exogamia. Também é preciso considerar como, justamente em um momento de passagem da família para a construção de um lugar no mundo (laboral e amoroso), as contingências de uma pandemia apresentem um mundo tão incerto, tornando muito mais difícil calcular os rumos da própria caminhada. Daí a importância de sustentar diálogos, ler livros, ver filmes acerca dos impasses que cada geração teve que atravessar diante do momento histórico social próprio de sua juventude, bem como poder dar um “rolê virtual” com os amigos em que se possa trocar experiências com os semelhantes, mesmo diante de todos os limites da virtualidade.
Frequentemente se diz dos bebês “eles não entendem”. Certamente os mais pequenos ainda não estão dentro de todos os códigos que implicam uma compreensão da significação de palavras que não estão atreladas ao seu cotidiano. Mas um bebê é afetado pelo contexto que o cerca, pelas significações que se outorgam ou não às suas primeiras experiências, pela preocupação de seus pais, bem como pela solidão com que muitos têm exercido os cuidados dos bebês durante a quarentena. Os bebês que estão nascendo nesse período, e que por algum motivo precisam permanecer internados em UTI, têm sofrido uma privação de contato e relação com os pais ainda maior do que já ocorria anteriormente em circunstâncias de internação. Às vezes os bebês são apenas “mostrados” para os pais por uma tela, sem que haja interação ou qualquer possibilidade de diálogo. Quanto aos que podem ir para casa com os seus pais, na falta de um suporte de avós ou comadres que junto à mãe sustentem o exercício da função materna, interpretando o que se passa com o bebê nas cenas do cotidiano, os pais frequentemente se vêem lançados a significar o que se passa com o bebê exclusivamente por informações retiradas de blogs, em lugar de poderem atrelà-las ao mito familiar.
Lembro aqui o caso de uma menininha de pouco mais de dois anos que voltou a acordar durante a noite e a ter pesadelos. As sessões vêm ocorrendo parte com ela, que me mostra e me conta coisas do sítio de sua avó, e parte com a mãe. Junto a esta percebemos que ela tem testemunhado conversas de trabalho do pai em que transparece a preocupação com o momento atual, sendo eles pais muito implicados com a saúde a educação coletivas que temem por toda uma sociedade.
Um bebê não conta com os recursos ficcionais – de faz de conta, de desenho ou de narrativas fantásticas – que uma criança maior tem. Por isso, os bebês respondem com a organização ou desorganização de seu corpo em relação à fome-saciedade, sono-vigília, modulação emotiva, disponibilidade ou não a olhar ou a escutar os outros, estando muito expostos às condições do contexto em que vivem. Por isso é preciso considerar muito bem o que se fala com eles para que possam entender o que está acontecendo e também o que se diz na frente deles.
Nesse caso acima, ao se falar com ela sobre o que estava acontecendo e ao poupá-la da tensão da conversa dos adultos, seu sono voltou a se apaziguar.
A sustentação dos atendimentos clínicos em estimulação precoce com a primeiríssima infância é, portanto, muito importante durante a quarentena. Por um lado, mantendo-se na condição de interlocutores privilegiados dos pais, escutando suas angústias e construindo com eles saídas em um momento de grande intensidade de convívio com o bebê. Por outro, testemunhando situações de encontro com o bebê em que se revela a grande potência de estímulos presentes nas atividades de vida diária para a linguagem, psicomotricidade e aprendizagem, por meio das quais se produzem experiências estruturantes sem que seja preciso recorrer a nenhuma intervenção tecnicista ou artificiosa. Na primeiríssima infância o brincar se sustenta em uma relação compartilhada. São os pais aqueles que introduzem pequenas brincadeiras em meio aos cuidados, com musiquinhas, cócegas ou olhares que produzem uma condição de prazer no encontro com o bebê. (J.Jerusalinsky, 2011). Esse prazer compartilhado é estruturante das diferentes funções desde o comer e dormir, ao caminhar e falar(Bergés, 1988). Assim muito mais do que produzir uma intervenção que submeta o bebê a fazer algo, é preciso considerar o que pode convocar o bebê a desejar realizar essa produção. Em outras palavras, a intervenção em estimulação precoce que parte de um paradigma psicanalítico, não se restringe a “fazer com que o bebê faça”, mas busca “fazer com que o bebê deseje fazer”. Questão pertinente de retomar em meio a suspensão de atividades pré-programadas, que tantas vezes enrijecem os encontros com os bebês e as pequenas crianças, suprimindo a espontaneidade do prazer compartilhado do brincar.
Por último, não podemos deixar de lembrar que estamos completando dois anos da REDE-BEBÊ. Um trabalho conjunto, sustentado por colegas de diferentes núcleos locais, articulado em torno da questão de cuidados, intervenção, educação e clínica com a primeira infância: bebês de 0-3 anos e pequenas crianças de 3-6 anos.
Se a covid-19 é causada por um vírus, tal acontecimento natural assume as dimensões de uma pandemia em uma sociedade que tem dado pouquíssima importância à prevenção, bem como a um estado de bem estar social, causando danos muito maiores pela falta de cuidados preventivos.
Não sairemos dessa pandemia para o mesmo mundo que deixamos, tornando- se imprescindível pensar em que direção desejamos prosseguir (Harari, Byung e Zizek já vem apontando isso). No que tange à saúde, fica a descoberto que:
– Não existe saúde individual, já que o lugar de cada um se sustenta em uma rede, tornando imprescindível o acesso à um sistema único de saúde universal.
– Também fica evidente que pretender situar saúde e economia em campos opostos é querer negar que eles estão indissociavelmente articulados pela gestão de saúde pública. Esta, quando mal conduzida, produz danos à população que poderiam ser evitados ou minimizados, empurrando os mais desprotegidos ao risco do adoecimento.
– Ainda que, um país que não investe na saúde acaba pagando um preço econômico muito mais alto por isso. Torna-se também inquestionável que a prevenção no sentido de criar ações de promoção de saúde e precoce detecção de riscos, além de ser o mais ético, é sempre o menos custoso, a longo prazo, em termos humanos e econômicos do que o tratamento de doenças instaladas – e o mesmo vale para a saúde mental.
Por isso está na ordem do dia aquilo que diz respeito aos princípios de trabalho que compartilhamos coletivamente na REDE-BEBÊ: considerando- se a importância de apoio à RAPS, bem como a inscrição de um acompanhamento de desenvolvimento na primeiríssima infância permeados por critérios de estruturação psíquica do bebê na relação com os outros, que permitam sustentar as condições favoráveis para essa estruturação, bem como para o exercício da função materna.
Enquanto bebês em sofrimento psíquico continuarem sendo excluídos por falta de visibilidade, recebendo tratamentos apenas quando neles, anos mais tarde, se realizam os diversos sintomas de quadros psicopatológicos, seguirá operando o paradigma da doença e da medicalização em lugar de fazer valer o da detecção precoce de riscos para apostar na estruturação, intervindo o antes possível quando algo não vai bem. Por isso seguiremos trabalhando.
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Texto da REDE-BEBÊ, organizado por Julieta Jerusalinsky (Núcleo São Paulo) com a participação dos integrantes da comissão de organização do III encontro da REDE-BEBÊ: Luciana Oltramari Cesar e Vivian Nolasco (Núcleo Passo Fundo), Maribel de Salles de Melo (Núcleo de Paraná) Zulema Garcia Yañez (Núcleo de Porto Alegre) e apoio dos Núcleos Locais de: Goiânia, Cuiabá, Paraná, Vitória, Santa Cruz do Sul, Florianópolis, Criciúma, Porto Alegre, São Paulo, Passo Fundo, São José do Rio Preto.
Julieta Jerusalinsky é psicanalista, especialista em clínica de bebês (Centro Lydia Coriat Buenos Aires) mestre e doutora em psicologia clínica (PUC-SP) professora dos cursos de especialização em Teoria Psicanalítica (COGEAE PUC-SP) e Estimulação Precoce: clinica transdisciplinar do bebê ( do Instituto Travessias da Infância – Centro de Estudos Lydia Coriat-SP), membro da Clínica Interdisciplinar Mauro Spinelli, do Instituto Sedes Sapientiae e da REDE-BEBÊ.
Artigo deDorisnei Rosa e Maíra F. Brauner
Artigo deRosa Maria Marini Mariotto