Em contexto público já precário antes da Covid-19, enfatizamos a valorização do trabalho clínico e da discussão psicanalítica para colaborar para a saúde institucional no oferecimento de serviços à comunidade.
“Sem pedir licença
Muda nossa vida
E depois convida
A rir ou chorar
Nessa estrada não nos cabe
Conhecer ou ver o que virá
O fim dela ninguém sabe
Bem ao certo onde vai dar”
(Aquarela, Toquinho, 1983)
Introdução: pandemia, um vírus em incubação
Neste ano de 2020, que vem sendo atravessado pela pandemia do Covid-19, observamos vários desvelamentos que se intensificam à medida que a potência trágica do evento avança e entra em confronto com os posicionamentos oficiais, os quais, muitas vezes contraditórios, deixam a população à mercê de suas próprias pulsões (Freud, 1916), além de uma sensação de desconfiança com relação aos saberes e dizeres veiculados à exaustão.
Observamos reflexos desta vulnerabilidade somato-psíquica na esfera pessoal, vincular, familiar, grupal e institucional que, diante do perigo iminente e do real risco de morte, permitem pouca possibilidade de elaboração e representação, já que diariamente somos invadidos por medos e angústias inomináveis (Bion 1962).
Junto a isso, sabemos que as estruturas de saúde essenciais padecem, há algum tempo, da dura e complexa realidade de um sucateamento de várias frentes de trabalho, fazendo parte deste cenário os setores e serviços que atuam na saúde mental da população.
Além de um histórico de cortes empregatícios e mutilações de vínculos terapêuticos, assistimos a um crescente desmanche e desarticulação da assistência à saúde mental. Vemos nuances ideológicas e administrativas que privilegiam transtornos codificáveis, medicalização da subjetividade e das relações e vivemos com as demandas e formas possíveis de atendê-las e com a constante necessidade de alinhar a clínica e o discurso administrativo.
Diante da realidade caótica que nos cerca e frente à necessidade de isolamento social, visando minimizar a perda de vidas, fomos levados a buscar outras formas de estar juntos e fazer nossa clínica. Vivemos um impasse com relação à própria sobrevivência e a sobrevivência de nossos serviços. Descobrimos, então, novas maneiras de compensar a ausência física do outro, seja nos contatos sociais ou profissionais.
Em nosso serviço público de atendimento em saúde mental vinculado a um contexto médico hospitalar, após um momento de descontinuidade para reflexão e planejamento, passamos a assistir nossos pacientes a partir da modalidade de atendimento on-line – modalidade de atendimento e assistência que se mostrou possível diante da realidade da pandemia – com adesão significativa das famílias. Começamos a efetuar chamadas de vídeo via aplicativos, já que estas eram a ferramenta de que dispúnhamos e, também, passamos a fazer reuniões clínicas on-line para discussão de casos e troca de experiências sobre as possibilidades que este novo dispositivo clínico nos provocava e ensinava.
Marcamos aqui que fizemos uma escolha por nomear esta modalidade como on-line e não “remota” ou “à distância”, pois nosso esforço vai na direção de tentar construir pontes, linhas e conexões, um modo de estar perto mesmo com a distância geográfica – o que é almejado que aconteça nos atendimentos on-line é a recriação do contato, do vínculo, do laço necessário para que a clínica possa acontecer.
Ponderações sobre os atendimentos on-line ocorridos durante a pandemia
Somos uma equipe interdisciplinar, formado por psicólogos, psicanalistas, pediatras, enfermeira, fonoaudióloga e psicopedagoga, e nosso olhar clínico sobre as questões mentais da infância abarca a complexidade que é inerente ao ser humano, não ficando restrito a uma única área de conhecimento ou a um único aspecto do existir. Nessa direção, consideramos que o enredamento da vida humana se revela tanto nas manifestações comuns e cotidianas como nas diferentes expressões psíquicas de sofrimento. Por isso, em nossa clínica, temos um olhar e escuta plurais.
Nosso objetivo é promover experiências que ampliem o repertório das relações da criança com o ambiente por meio de intervenções individuais, grupais e familiares. Os projetos terapêuticos são construídos de acordo com a singularidade de cada criança, nos diferentes momentos do tratamento. Este trabalho é tecido a cada encontro de maneira sensível e compartilhada.
Quando as sessões são presenciais, o terapeuta se empresta em uma relação onde o corpo entra em cena. As crianças brincam, usam brinquedos, buscam a atenção do terapeuta e interagem de maneira muito viva e intensa. Com o início da pandemia, suspendemos os atendimentos presenciais e tivemos que nos reinventar para investir em atendimentos on-line, a fim de dar continuidade ao acompanhamento dos pacientes do nosso setor e de suas famílias sustentando o vínculo e a confiança na instituição, enquanto um lugar que acolhe o sofrimento psíquico. Nossa equipe se organizou para poder oferecer uma escuta atenta à maneira como cada família vinha enfrentando a pandemia. Organizamos sondagens telefônicas e construímos com cada família uma maneira peculiar de estar juntos.
No contexto de trabalho em saúde mental, em relação ao atendimento hoje configurado como online-remoto-teleanálise ou atendimento à distância encontramos menções em periódicos científicos e publicações internacionais desde a década de 50, a partir do atendimento terapêutico telefônico trazido por Saul em 1951. Os desdobramentos que se seguiram por meio de diversas plataformas na internet, (Mendes,2015), (Queiroz & Donard, 2016), (Virole, 2015) viabilizaram o atendimento à distância, hoje autorizado e praticado (mesmo anteriormente à pandemia) com regulamentação junto aos Conselhos Regionais de profissionais responsáveis pelos cuidados terapêuticos em Saúde Mental.
No entanto, o que se iniciou como forma de cuidado para superar distâncias geográficas (Scharff, 2013), hoje se coloca como potente alternativa para manter a proximidade emocional, mostrando-se coerente com a necessidade de afastamento físico e diminuição do trânsito social para proteção dos riscos de propagação do vírus, garantindo a segurança das famílias e dos profissionais (Jerusalinsky, 2020).
Com o decorrer dos atendimentos, percebemos a riqueza do que vinha acontecendo e de como o setting também era potente nesta modalidade. Assim, fomos impulsionadas a aprofundar nossa prática com as parcerias da vídeo-tecnologia, para o desenvolvimento do trabalho clínico como campo de estudo, ensino e formação.
No atendimento on-line não havia mais a proximidade física, porém, o corpo continuava ligado por meio das brincadeiras e na subjetividade destas crianças, bebês e suas famílias. Além disso, abriam-se outras possibilidades no trabalho, como a relação da criança com o seu meio e, muitas vezes, com seu entorno familiar, e não mais somente com um acompanhante, como usualmente acontecia nos atendimentos presenciais. Diferente, portanto, de uma possibilidade jamais imaginada por nós quanto ao acolhimento de crianças e até de bebês pela bidimensionalidade da tela. Tivemos que repensar nossos pré-conceitos.
Da pandemia à transição para o retorno presencial
Com a retomada dos atendimentos presenciais, surgem também muitas reflexões e questões clínicas, considerando a singularidade e especificidade de nossos atendimentos. Como fazer isto em períodos de risco de contaminação por um vírus que a ciência ainda está estudando os efeitos? Como dizer para uma criança que não se pode tirar a máscara, que não podemos nos aproximar, que não se pode manusear brinquedos? Como convocar as famílias a virem semanalmente, mesmo que estejamos cientes dos riscos de contágio que podem estar implicados?
A população que atendemos, muitas vezes crianças que tem questões clínicas importantes, estão isoladas em suas casas, quando possível, e sem contato com o meio externo. São famílias e crianças que estão em atendimento justamente por apresentarem riscos de estruturação psíquica, em que muita angústia e medos estão presentes. Será que precisamos ser mais um fator de ansiedade neste momento?
A partir da linguagem da clínica, esperamos refletir sobre a necessidade de aprofundar diálogos, integrando a preocupação dos profissionais de saúde com as condições sanitárias e promotoras de saúde mental das famílias sob nosso atendimento, com as preocupações dos gestores financeiros e administrativos para a possibilidade de continuidade dos serviços de formação e assistência. Como cuidar deste trânsito e da saúde física/concreta e mental/vincular deste alinhamento?
A preocupação dos profissionais de saúde com as condições sanitárias e promotoras de saúde mental das famílias sob nosso atendimento, muitas vezes diferem das situações privilegiadas pelos órgãos gestores de cuidados para investimento financeiro e administrativo. Ao mesmo tempo em que se exigem garantias de dedicação organizacional e trabalhista, não se consideram nuances e especificidades clínicas nem se priorizam verbas para garantia de condições básicas de manutenção de condições regulares que poderiam facilitar proteções a todos. Muitas vezes, em nosso precário ou “híbrido” sistema de saúde, combinando interesses particulares e comunitários, o direcionamento de recurso pouquíssimas vezes contempla a maioria da população e conta com a disponibilidade dos indivíduos para suprir as responsabilidades do que deveria ser uma gestão comunitária visando o interesse coletivo.
Em momento de possíveis cortes de dedicação de profissionais e necessidade de imposição do retorno presencial em massa ou em blocos, com a justificativa pseudo – pós pandêmica ou, talvez, realística de que pandemias vieram para ficar e que temos que lidar com isso, exercita-se uma sub valorização das alternativas construídas ao longo deste processo em projetos terapêuticos singulares que se mostraram sintônicos a esse momento de consciência quanto à necessidade de isolamento social. A assistência on-line vem atendendo as necessidades que se impuseram com a pandemia e, por isso, acreditamos que um retorno com uma margem maior de segurança para todos os implicados, poderia ser estruturado, na tentativa de construção de um modelo híbrido de trabalho e de um projeto de saúde coerentemente comunitário. A manutenção desta modalidade remota que se mostrou possível, em nosso entender clínico, e a preferência nesse momento ainda por esta forma de acesso ao contato terapêutico, recomendada pelo CRP, por exemplo, contrasta com a recomendação institucional do retorno presencial como modalidade prioritária.
A que interesse servem essas urgências por contato e facilitação de contágio, ou pelo menos retirada de cuidado para manter a possibilidade de proteção mais garantida e comprovada pelas organizações nacionais e internacionais de saúde? Como entendemos essas lacunas e descompassos entre as recomendações gerais, coerentes com a clínica possível seguindo essas recomendações e a as políticas oficiais das instituições administrativas no exercício da oferta de serviços públicos, sutilmente destoante desta perspectiva?
Considerações finais: pesquisando, na clínica e no diálogo, uma vacina possível
Investimentos internos, grupais e recíprocos entre as famílias e a estrutura de nosso serviço foram possíveis para continuar o vínculo clínico neste momento de ameaças de ruptura com base nas singularidades e nos projetos construídos como planos terapêuticos com sentido para os cidadãos que neste momento também ainda vivenciam as mesmas urgências de proteção e cuidados de saúde.
Constatamos a necessidade de que as particularidades de nossa clínica sejam consideradas, bem como nossa experiência à distância que vem ocorrendo sistematicamente. Temos trabalhado no sentido de que o retorno aos atendimentos presenciais possa acontecer, prioritariamente, a partir de decisões sanitárias e clínicas para cada população atendida; e que estas diretrizes funcionem como vetores de organização do modo como realizaremos nosso trabalho, para que neste momento, continuemos exercitando e reinventando soluções que viabilizem saúde e atenção biopsicossocial para a comunidade.
O detalhamento e discussão de nossa clínica em suas expansões on-line, suas particularidades e interfaces com as preocupações sanitárias e organizacionais pode favorecer a continuidade de diálogos, para que neste momento, continuemos exercitando e reinventando soluções que viabilizem saúde e atenção biopsicossocial para a comunidade.
Junto à tela tecnológica, trabalhamos intensamente com nossa tela psíquica que amplia dimensionalidades a partir do encontro clínico (Roussillon, 2012). Em meio à presença de morte e de vida, na vivência compartilhada da pandemia, considerando seus impactos dentro de nossos espaços públicos e internos, alimentamos o desenvolvimento simbólico, elaboramos sofrimento, comemoramos trânsitos de crescimento e sustentamos vínculos a fim de promover saúde e subjetivação.
Em meio à ameaça da pandemia e no contexto de pandemônio instaurado nas bases governamentais em nosso país, corremos entre vários outros riscos ambientais e sanitários, o risco de perda de autonomia e aprofundamento técnico conceitual em várias “passadas de boiada” ao invés da atenção à ciência e ao conhecimento a partir da experiência.
Quando teremos vacina para a Covid 19? Quando teremos vacina para favorecer a integração governamental em medicina de saúde pública baseada em valores humanitários? Esperamos que a discussão e a clínica psicanalítica possam continuar a compor redes de reflexões entre profissionais e serviços de saúde, expandindo nossa esperança de preservação de vida e saúde psíquica, para nós, para a comunidade por nós atendida e para nossos gestores neste campo.
Referências:
Bion, W. (1962). Learning from experience. London: Heinemann.
Freud, S. (1914 – 1916) Obras completas: o instinto e seus destinos Trad. Paulo Cezar Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2010 b.v. 12
Jerusalinsky, J. (2020). Ser bebê, criança e adolescente na pandemia: cuidar e educar nas
encruzilhadas entre a estruturação psíquica e o risco e covid-19. Revista Crianças, Peças soltas,
junho: 1-9.
Mendes, R. (2015). Smartphones – objeto transicional e conectividade de um novo espaço
potencial. Estudos de Psicanálise, 44: 133–144.
Queiroz, E. F., & Donard, V. (2016). Psicoterapias via webcam: uma perspectiva psicanalítica.
In Costa-Fernandez, E. M., & Donard, V. (Orgs.). O psicólogo frente ao desafio tecnológico:
novas identidades, novos campos, novas práticas (pp. 161-171). Recife: Editora UFPE; UNICAP.
Roussillon, R. (2009). Manual da prática clínica em psicologia e psicopatologia. São Paulo: ‘
Blucher
Scharff, J. S. (2013). Psychoanalysis Online: Mental Health, Teletherapy and Training. London:
Karnac.
Virole, B. (2015). Immersion dans les mondes virtuels et émergence de
I´intentionnalité. Disponível em http://virole.pagesperso-orage.fr./IAPSY.pdf.
Palavras Chave: Saúde pública, Pandemia, Atendimento on-line, Clínica psicanalítica com crianças
Sobre os autores:
Elisa Maria Carneiro, psicopedagoga do setor de Saúde Mental da Disciplina de Pediatria Geral e Comunitária, Depto de Pediatria da UNIFESP – SP, carneiroelisamaria@gmail.com ;
Juliana de Souza Moraes Mori, fonoaudióloga do setor de Saúde Mental da Disciplina de Pediatria Geral e Comunitária, Depto de da Pediatria da UNIFESP – SP e Doutoranda em Fonoaudiologia pela PUC-SP, jsmmfono@gmail.com;
Kátia Jordy, psicóloga do setor de Saúde Mental da Disciplina de Pediatria Geral e Comunitária, Depto de Pediatria da UNIFESP – SP, katiajordy@gmail.com ;
Mariângela Mendes de Almeida, psicóloga, coordenadora do Núcleo de Atendimento a Pais -Bebês do setor de Saúde Mental da Disciplina de Pediatria Geral e Comunitária, Depto de Pediatria, UNIFESP, Mestre pela Tavistock Clinic/UEL e Doutora pela Unifesp, Membro Filiado ao Inst. de Psicanálise da SBPSP, mamendesa@hotmail.com ;
Marizilda Pugliesi, psicóloga do setor de Saúde Mental da Disciplina de Pediatria Geral e Comunitária, Depto de Pediatria da UNIFESP – SP, Mestre em Psicologia Clínica no Núcleo de Subjetividade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), marizildapugliesi@gmail.com;
Silvana Vieira S. Santos, psicóloga e psicoterapeuta, enfermeira do setor de Saúde Mental da Disciplina de Pediatria Geral e Comunitária, Depto de Pediatria da UNIFESP – SP; silsilsi2008@gmail.com;
Solange Araújo, psicóloga do setor de Saúde Mental da Disciplina de Pediatria Geral e Comunitária, Depto de Pediatria da UNIFESP. – SP, solaraujo44@gmail.com.